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12 de junho de 2019 | Morad

A ausência

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Uma das piores sensações que alguém pode experimentar, sem dúvida alguma, é a ausência, qualquer que seja a forma ou intensidade. Não apenas em razão da dor, mas, também, pelos crescentes e muitas vezes silenciosos malefícios que ela proporciona. Veja, por exemplo, as graves consequências de um pai ausente na vida de um filho ou, então, as consequências nocivas de um marido ausente, ou de uma mulher, na vida de um casal.

Se os problemas ocasionados por um pai ausente podem ser resolvidos, ou pelo menos bem encaminhados em direção a uma solução satisfatória, por meio de uma reaproximação repleta de amor e carinho, reforçada por uma conversa franca e por uma necessária correção de rota; ou, então, se os problemas decorrentes de um marido ausente podem ser satisfatoriamente resolvidos por aquele vizinho bonitão — pensando bem, talvez isso não seja uma boa ideia —, o que fazer quando esse marido, inspirado no célebre Richard Burton — não aquele ator que chegou a se casar com a icônica atriz Elizabeth Taylor, mas, sim, aquele outro, o aventureiro, escritor e diplomata britânico — resolve provar, contra tudo e contra todos, que é perfeitamente possível manter um contato cordial e até mesmo tirar uma selfie com temíveis indígenas da tribo Moxihatëtëa, lá nas profundezas da selva Amazônica.

Nesse caso, a melhor solução, sem dúvida alguma, seria interna-lo em uma instituição especializada em transtornos mentais!

Mas vamos supor que esse marido aventureiro, apesar dos apelos da desolada mulher, resolva, mesmo assim, colocar em prática essa disparatada aventura e, num belo dia ensolarado, parta em direção à Roraima, com um exemplar de O Contrato Social em uma das mãos e com um smartphone na outra. Suponha, ainda, que após uma semana… nada desse camarada aparecer! Passa-se um mês e… nada! E após um ano… nada desse marido aventureiro dar o ar da respectiva graça.

E aí? O que fazer diante de uma situação dessas, em que alguém desaparece sem deixar vestígios? Valer-se de um especialista que tenha os dotes investigativos do detetive Jack Malone — personagem da interessante série televisiva Without a Trace — para localizar o paradeiro do desaparecido?  Ou, então, orar fervorosamente em louvor ao Santo Antônio, santo da igreja católica protetor daqueles que procuram um grande amor, um objeto perdido e até mesmo uma pessoa desaparecida? Pois é! Não resta a menor dúvida que o empenho para a localização de alguém desaparecido é uma medida digna de elogios, ou que uma boa e sincera súplica perante o Criador — qualquer que seja a forma como Ele é concebido — é fundamental para se manter a chama da esperança viva, mesmo porque ela, de fato, é a última que desaparece, digo, que morre!  Mas apenas isso não é suficiente para proteger e remediar esse tipo de situação, principalmente no âmbito jurídico. Nessas circunstâncias, impõe-se a obtenção de uma declaração judicial de ausência e a oportuna nomeação de um curador destinado a proteger e administrar provisoriamente os respectivos bens, enquanto o mencionado marido aventureiro não aparece.

Necessário se faz ressaltar que sob o prisma jurídico a ausência nada mais é do que o desaparecimento de alguém do respectivo domicílio, sem deixar um representante ou procurador para administrar seus bens. Por envolver relevante interesse social, tanto em relação à preservação dos bens do desaparecido, quanto à proteção dos interesses dos eventuais herdeiros em caso de morte presumida, houve por bem o legislador dar tratamento a essa matéria por meio do Código Civil.

A legislação pertinente, no que concerne a essa matéria, não prevê um prazo específico para a caracterização da ausência. No exemplo em questão, não seria razoável cogitar eventual ausência caso o marido aventureiro não voltasse para casa no prazo de uma semana ou até mesmo no prazo de um mês. Mas, passando disso, já dá para imaginar que aquela propalada selfie provavelmente não saiu da forma inicialmente imaginada. Oportuno se faz ressaltar que essa mensuração temporal para a caracterização da ausência é feita a partir da data em que o ausente foi visto pela última vez ou que dele se teve notícia.

Assim, constatada a ausência, sem que o marido desaparecido tenha deixado um procurador para a administração de seus bens, caberá a qualquer interessado ou ao próprio Ministério Público requerer a respectiva declaração judicial nesse sentido e a oportuna nomeação, na forma da lei (CC, art. 22), de um curador para essa finalidade, de modo a atender a expectativa de um eventual retorno, afinal, se no Senhor dos Anéis o rei voltou e se em Star Wars até mesmo o último jedi também voltou, por que então o marido aventureiro do exemplo não poderia voltar também? A preocupação do legislador, em casos dessa natureza, está focada na preservação e na administração dos bens do ausente. Em casos assim, o cônjuge do ausente, sempre que não esteja separado judicialmente ou de fato, por mais de dois anos contados da respectiva declaração de ausência, será nomeado o legítimo curador. Na falta do cônjuge, tal incumbência  recairá aos pais ou aos descendentes, nessa ordem (cf. CC, art. 25 e respectivos parágrafos).

Se nessas obras de ficção tudo é possível e nem mesmo o céu é o limite, na vida real, contudo, as coisas costumam ser um tanto diferentes. Convenhamos, a probabilidade de alguém sobreviver durante uma tola e inconsequente tentativa de tirar selfies com indígenas selvagens, que disparam mortíferas flechas em quem deles tenta se aproximar, é praticamente remota. Aliás, quem não se lembra da triste história do bem intencionado missionário John Chau, morto a flechadas pelos isolados e selvagens habitantes da ilha North Sentinel, situada no Oceano índico, quando tentava pregar o evangelho?

Assim, se essa ausência se prolongar, o cônjuge não separado, os herdeiros, os credores e os detentores de direitos pendentes sobre os bens do ausente, poderão requerer,  após um ano contado da arrecadação dos bens do ausente, a abertura da respectiva sucessão provisória (CC, art. 26). Nessa hipótese, a morte do ausente é legalmente presumida, de modo a operar efeitos apenas e tão somente no âmbito patrimonial. Vale dizer que a esposa do aventureiro ausente, em virtude dessa presunção, não é considerada viúva. Caso ela queira se casar com aquele prestativo vizinho — na mais ampla acepção desse adjetivo —, terá de promover o respectivo divórcio, com a consequente citação do marido ausente por meio de editais.

Na sucessão provisória, tanto os ascendentes quanto os descendentes e o cônjuge poderão, independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente e farão jus a todos os respectivos frutos e rendimentos. Já os herdeiros, para se imitirem na posse provisória, deverão, para tanto, dar garantia, seja por meio de penhor, hipoteca ou qualquer outra modalidade capaz de garantir a eventual restituição desses bens, em relação aos quais deverão capitalizar a metade dos respectivos frutos e rendimentos e dela prestar contas anualmente perante o poder Judiciário.

Vamos supor que a vida, por meio de uma licença poética, resolva imitar a arte, e o marido aventureiro, que até então estava ausente, apareça cinco anos depois cantarolando o enfadonho refrão “eu voltei pras coisas que eu deixei, eu voltei…”, da música O Portão, do eterno rei da Jovem Guarda. Pois é, se o próprio cachorro, que nessa hora deveria “sorrir”, começa a raivosamente, imagine então a reação da suposta “viúva” ao dar de cara com uma maltrapilha e barbada figura que por cinco longos anos permaneceu completamente ausente? As lágrimas por ela derramadas nessa oportunidade certamente não serão de alegria, mas, em vez disso, serão de puro desespero, por conta daquele vizinho que está refestelado, nesse exato momento, na aconchegante cama do casal.

Ficção ou não, duvido que alguém, em são consciência, gostaria de estar na situação de algum desses personagens!

Se o marido ausente aparecer no período em que perdurar a sucessão provisória — isto é, dez anos antes da data em que a sentença que concedeu a abertura da sucessão provisória dos seus bens tenha se tornado definitiva (trânsito em julgado) —, o estado de ausência cessará imediatamente!

Nesse caso, os sucessores, com o coração explodindo de alegria — ou, conforme o caso, de raiva — pela volta do marido aventureiro, deverão restituir a esse legítimo dono os bens havidos por conta da partilha provisória. Essa restituição deverá ser integral se ausência for justificada, por exemplo, em razão de cativeiro etc. Porém, se ficar provado que a ausência desse aventureiro foi voluntária e injustificada, ele perderá, nesse caso, em favor dos sucessores, a parte concernente aos frutos e rendimentos desses bens. Mais especificamente, se esse aventureiro, em vez de cativo, tivesse na realidade, por vontade própria, desfrutado da hospitalidade de uma tribo de bons selvagens, capazes de encher de orgulho o célebre filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau, então, nessa hipótese, ele perderia em prol dos respectivos sucessores a integralidade dos frutos e rendimentos provenientes desses bens durante o período em que aprazivelmente permaneceu com esses indígenas.

Se o ausente não aparecer nos dez anos seguintes, contados da data em que a sentença que concedeu a abertura da sucessão provisória tornou-se definitiva (trânsito em julgado), será ele presumido morto. Em virtude disso, poderá, a partir daí, ser requerida a abertura da sucessão definitiva, oportunidade em que a propriedade desses bens será adquirida pelos sucessores (cf. CC, art. 37).

Vamos supor, mais uma vez, para a “alegria” desses sucessores e para “regozijo” da respectiva esposa, que o marido ausente, alguns anos depois, ou seja, nos dez anos seguintes à abertura da respectiva sucessão definitiva, resolva aparecer, desta vez cantarolando o refrão “voltei pra rever os amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria”, da icônica música “A Volta do Boêmio” de Nelson Gonçalves. Certamente essa esposa, quase dez anos depois, não irá chorar de alegria, mas, em vez disso, de raiva, vez que já se divorciou, já se “arrumou” com o tal do vizinho e por ai vai!

Mas… e aí? O boêmio, digo, o marido aventureiro não estava morto? Pois é! Estava! Mas, por ter aparecido, em carne e osso, não está mais, mesmo porque a morte dele era apenas presumida. Nesse caso, ele terá o direito de reaver os bens porventura existentes ao tempo do regresso, entretanto, no estado em que se encontrarem. Caso tenham sido substituídos por outros, esses bens deverão ser a ele entregues ou, então, se isso não for possível, o correspondente preço por eles conseguido (cf. CC, art. 39).

Por fim, o que acontece se o ausente não regressar e nenhum interessado promover a respectiva sucessão definitiva? Nesse caso os bens arrecadados passarão ao domínio do município onde estiverem localizados; e se estiverem localizados no DF, passarão ao domínio da União (cf. CC, art. 39, parágrafo único).

Em linhas gerais, esse é o panorama da ausência no âmbito jurídico. Em um sentido mais amplo, já foi dito em algum lugar que só se notam os ausentes quando o momento é desagradável.  E pelo jeitão da coisa, deve ser isso mesmo. Aliás, a esposa desse aventureiro ausente que o diga!

José Ricardo Armentano

Advogado no escritório Morad Advocacia Empresarial

 

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