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18 de setembro de 2019 | Morad

A liberdade religiosa e o direito à vida

Liberdade Religiosa
Liberdade Religiosa

 

Eis aí uma questão extremamente relevante e delicada, não muito bem delineada legislativamente, e cujo entendimento não está pacificado entre os estudiosos do Direito, tampouco em nossos tribunais: o direito de recusar transfusões de sangue por conta das respectivas convicções religiosas.

Tanto é assim, que a então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, em virtude da insegurança jurídica originada pelo Conselho Federal de Medicina ao estabelecer, por meio da sua Resolução de nº CFM 1.021/1980, o dever de o médico realizar a transfusão de sangue, mesmo havendo oposição do paciente ou dos respectivos responsáveis legais, houve por bem promover recentemente perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF de nº 618 (cf. STF, 7000609-08.2019.1.00.0000), com a finalidade de assegurar as Testemunhas de Jeová, desde que maiores e capazes civilmente, o direito de não se submeterem a esse tipo de tratamento em razão das respectivas convicções religiosas.

Com efeito, trata-se mesmo de uma questão delicada, já que ela envolve dois bens juridicamente tutelados extremamente valiosos: a vida e a liberdade religiosa!

Embora inexista na Constituição Federal uma hierarquia entre os bens por ela tutelados e considerados invioláveis, ainda assim é possível admitir que o bem jurídico mais precioso que o homem possui, ainda que de forma efêmera e transitória, é a vida, vez que sem ela — pelo menos no plano material — não há absolutamente nada! Tal assertiva, aliás, é de fácil alcance e compreensão, afinal, a vida é o campo onde homem, durante a sua existência terrena, semeia os seus sonhos e as suas aspirações, trava as suas batalhas, realiza os seus feitos e colhe os respectivos frutos.

Em patamar semelhante e de igual modo importante encontra-se a fé. Aliás, além dela ser um dos principais componentes que alimentam a chama da vida, conforta e ilumina, também, o árduo — porém gratificante — caminho para uma existência profícua e plena. Vale dizer que sem a fé não há esperança, tampouco razão para se viver. Aliás, tal conclusão pode ser resumida em uma simples indagação: para que viver, ou, então, para que semear na aridez da descrença e da desesperança se daí nenhum fruto virá?

Entre esses dois importantíssimos bens é que se situa a religião. Em uma visão simplista, ela pode ser considerada como um conjunto de crenças e práticas rituais destinadas a aproximar a criatura do Criador — qualquer que seja a forma como Ele é concebido — ou, então, na concepção de Santo Agostinho, pode ser interpretada como uma forma de se alcançar a religação — religare — da criatura ao Criador.

Não é à toa, portanto, que tanto a vida quanto a liberdade religiosa são consideradas pela própria Constituição Federal como bens invioláveis (cf. CF, art. 5º, caput e inciso VI). E é justamente sob o prisma jurídico que surge o delicado conflito decorrente da correlação entre esses dois bens, aliás, importantíssimos e fundamentais à existência humana: o direito das Testemunhas de Jeová de não se submeterem a transfusões de sangue em razão das respectivas convicções religiosas.

Como é sabido, as Testemunhas de Jeová recusam-se terminantemente a receber transfusões de sangue, já que essa prática, de acordo com a fé delas — baseada nas Sagradas Escrituras — torna o homem impuro e indigno do reino de Deus.

Por envolver bens juridicamente tutelados de igual relevância — isto é, a vida e a liberdade religiosa —, tal questão acaba extrapolando o respectivo âmbito religioso e até mesmo o aspecto filosófico que a envolve, para desaguar no campo jurídico, onde não há um entendimento definitivo a respeito dela.

Se de um lado a Constituição Federal, conforme já salientado, considera a liberdade religiosa, tal como a vida, um bem inviolável (cf. CF, art. 5º, caput e inciso VI), de outro lado ela relativiza essa liberdade de crença na hipótese em que a obrigação legal é a todos imposta e na hipótese em que há recusa de cumprimento de prestação alternativa (cf. CF, art. 5º, inciso VIII). Além disso, no âmbito infraconstitucional, se de um lado a legislação civil assegura que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica (cf. CC, art. 15), de outro a legislação penal não considera crime de constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida (cf. CP, art. 146, § 3º, inciso I).

E para tornar esse quadro ainda mais controvertido, o Conselho Federal de Medicina, sob a premissa de que a medicina tem por finalidade cuidar da saúde do homem desvinculada de qualquer preocupação de ordem religiosa, reafirmou, por meio da mencionada Resolução CFM 1.021/1980, o dever do médico quanto à realização de transfusão de sangue em casos de iminente perigo de vida, independentemente da vontade do respectivo paciente ou de seu responsável.

Quando essa questão envolve um adulto, capaz e mentalmente são, é perfeitamente compreensível a admissão e a prevalência da respectiva vontade, pautada por crenças e convicções de ordem religiosa. Todavia, esse tipo de questão se torna dramática quando envolve a figura de um menor, incapaz de exprimir a respectiva vontade.

Aliás, não é de difícil percepção a delicada situação de um médico — inclusive no que concerne às eventuais consequências de ordem cível ou até mesmo penal — diante de um pai que, em razão das respectivas convicções religiosas, não permite tratamento para o filho moribundo menor de idade, que não tem condições de exprimir a própria vontade, ou até mesmo o filho nessas condições que, apesar de ser menor de idade, manifesta vontade contrária àquela exprimida pelos respectivos responsáveis legais.

Recentemente o Poder Judiciário, ao tratar de caso análogo, concedeu, em caráter de urgência, tutela cautelar autorizando uma equipe médica a realizar transfusão de sangue destinada a resguardar a vida e a saúde de uma recém-nascida, cujos pais professavam a fé das Testemunhas de Jeová. Ao proferir tal decisão, o magistrado ponderou que não se tratava de uma questão envolvendo pura e simplesmente a garantia de um direito individual — liberdade religiosa —, mas, em vez disso, tratava-se de garantir o direito — à vida — de uma pessoa ainda incapaz, com natureza personalíssima e, por conta disso, irrenunciável! (cf. TJ-GO, 15ª Vara Cível, processo 5112276-40.2019.8.09.0051, juiz Cláuber Abreu).

Já em outro caso emblemático — o qual, aliás, ilustra com perfeição a dificuldade que o tema envolve — ocorrido no século passado, mais especificamente no longínquo ano de 1993, e que se arrastou até os idos de 2014, envolvendo a morte de uma adolescente de treze anos, cujos pais, apesar dela padecer de uma anemia profunda, recusaram-se terminantemente a autorizar a realização de uma transfusão de sangue, em obediência aos preceitos religiosos das Testemunhas de Jeová. O Ministério Público, inconformado com essa conduta, houve por bem denunciá-los pela prática de homicídio doloso. A denúncia em questão, aceita, deu ensejo a uma ação penal, na qual foi proferida sentença de pronúncia, para que os pais dessa adolescente fossem julgados perante o Tribunal do Júri. Tal decisão, por sua vez, foi mantida em 2º grau de jurisdição pelo TJ-SP. Esse caso, conforme salientado anteriormente, arrastou-se anos a fio perante o Poder Judiciário, até que a Sexta Turma do STJ, ao analisa-lo em meados de 2014, entendeu por bem, após intenso e equilibrado debate de seus ministros, conceder de ofício habeas corpus aos mencionados pais, para extinguir a respectiva ação penal, vez que a conduta dos impetrantes — isto é, dos pais —, na concepção desses ministros, não era passível de ser tipificada como crime (cf. STJ, HC nº 268.459-SP – 2013/01106116-5; 6ª Turma, j. 02/09/14).

De acordo com a Ministra Relatora dessa decisão, Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, a matéria em discussão extravasa os limites estritamente jurídicos, de modo a desaguar nos campos filosófico, moral e religioso. Além disso, não envolve comportamento desumano ou pais que não nutriam bons sentimentos pela filha. Segundo a ilustre ministra, a casuística envolve a dolorosa perda de uma filha, onde os respectivos pais, por convicções religiosas, não dispunham propriamente de uma opção, mas, sim, de um único imperativo: negar autorização a um tratamento por meio de transfusão de sangue.

A esse respeito, oportuno se faz ressaltar o parecer mencionado nos respectivos autos a respeito dessa questão, fornecido pelo então professor Luiz Roberto Barroso, atualmente ministro do STF, segundo o qual “a crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV)”.

Em sentido contrário, manifestou-se nesse julgamento o ilustre ministro Sebastião Reis Junior. Segundo ele, em razão da vítima ser menor de idade, não poderia prevalecer a vontade dos pais. Na concepção desse ministro, deveriam os médicos responsáveis pelo caso ter atuado de modo adequado, tomando, na oportunidade, todas as medidas necessárias possíveis, não apenas em razão da imposição legal para tanto, como, também, em virtude da ausência de responsabilização penal caso assim procedessem. Segundo ele, o direito à vida, nesse caso, se impõe ao direito à crença religiosa dos pais.

Não há, à evidência, um entendimento pacífico a respeito dessa matéria. Mais especificamente: o direito à vida — por envolver o bem mais precioso que o homem possui — é o mais fundamental e deve, em razão disso, prevalecer sobre todos os demais, ou, então, o direito à vida não é absoluto, vez que não há uma hierarquia entre os direitos fundamentais?

Com efeito, essa controvérsia se torna infinitamente mais delicada quando envolve menores que não podem expressar as respectivas vontades.

A esse respeito, o professor de Direito Constitucional, Fábio Carvalho Leite, em brilhante trabalho publicado na revista eletrônica Custos Legis sobre esse tema, ressalta que a jurisprudência em países como a Alemanha, a Austrália, o Canadá, os EUA e a Itália, por exemplo, refletem o entendimento de que a recusa de transfusão de sangue por motivos religiosos é considerada como uma conduta amparada pela liberdade religiosa, vez que decorre de uma decisão tomada a partir de uma consciência individual que deve ser respeitada pelo Estado. E uma decisão dessa natureza só encontra amparo na liberdade religiosa quando tomada por um paciente adulto, plenamente capaz e em perfeito gozo das respectivas faculdades mentais. Nos demais casos em que o bem jurídico refere-se a outra pessoa, tal como o cônjuge ou o filho por exemplo, o entendimento, tanto jurisdicional quanto legislativo, é no sentido de não se admitir eventual recusa de tratamento[i].

Verifica-se, assim, que a mencionada ADPF de nº 618, promovida pela Procuradoria Geral da República perante o STF, reconhecendo, de um lado, a importância da liberdade religiosa e as complexidades a ela inerentes, e reforçando, de outro lado, a obrigação do Estado em proteger a vida do incapaz — em especial, a criança e o adolescente —, se constitui em uma importante iniciativa, não apenas para afastar a insegurança jurídica existente em relação a esse tema, mas, também, para assegurar a liberdade de crença e o direito daqueles que, maiores e capazes civilmente, não querem se submeter a tratamento médico envolvendo transfusão de sangue, em razão das respectivas convicções religiosas.

José Ricardo Armentano

Advogado no Escritório Morad Advocacia Empresarial

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