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21 de setembro de 2018 | Morad

Anulação do casamento por vício da vontade

Eis aí um tema doloroso para alguns e redentor para uns tantos outros: a anulação do casamento!

Aliás, se algum dia alguém, em sã consciência, acreditou que aqueles célebres votos proferidos por ocasião das cerimônias matrimoniais, do tipo… “até que a morte os separe”, eram absolutos e, em razão disso, definitivos, provavelmente experimentará uma grande decepção  ao descobrir que eles somente são válidos perante a Lei de Deus!

Perante a lei dos homens, contudo, esse tipo de questão é mais mundano, já que o Código Civil permite, naquelas situações por ele expressamente delineadas, que o casamento seja declarado, conforme o caso, nulo ou anulável e, consequentemente, desfeito.

A esse respeito, é importante esclarecer que, de um modo geral, o que diferencia os casos de nulidade dos casos de anulabilidade são justamente os efeitos deles emanados. Mais especificamente, nos casos em que for declarada a nulidade, o casamento não produzirá nenhum efeito desde a data da respectiva celebração (nulidade absoluta). Já nos casos envolvendo anulabilidade, os efeitos do casamento somente cessam a partir da respectiva anulação (nulidade relativa). Outra diferença importante é que o casamento anulável, ao contrário do casamento nulo, poderá, observados os requisitos previstos na legislação pertinente, ser validado.

Várias são as hipóteses para o desfazimento do casamento. Todavia, doravante, apenas será tratada a hipótese de anulação do casamento por vício da vontade, que é tão importante e tão relevante quanto às demais hipóteses previstas na lei.

O Código Civil, em seu artigo 1.550, inciso III, considera anulável o casamento por vício da vontade.

Mas afinal, o que é vício? Um chocólatra, por exemplo, é um viciado? Ou aquele palmeirense fanático que não perde um jogo do seu querido time, principalmente quando joga contra o arquirrival alvinegro — não o praiano, naturalmente —, mesmo que para tanto tenha de se ausentar do enterro da própria mãe, pode ser considerado um viciado? Talvez, no imaginário popular, esses exemplos, cada um ao seu modo, ilustrem verdadeiros casos de vício. Porém, em relação ao tema proposto, o termo vício tem um significado mais específico. O vício, na acepção jurídica dessa palavra, é o defeito, é a falha que macula um ato jurídico, um negócio jurídico. Ele se situa no campo da vontade, distorcendo-a, corrompendo-a, e consequentemente desvinculando-a do real desejo de quem a manifestou.

Por essa razão, a legislação pertinente relaciona o vício da vontade como uma das causas ensejadoras da anulação do casamento (CC, art. 1.550, III). Vale dizer que o casamento poderá ser anulado por vício da vontade, se houver por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro (CC, art. 1.556).

De acordo com a legislação pertinente, três são as hipóteses caracterizadoras de erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge.

A primeira delas diz respeito ao erro quanto à identidade, à honra e à boa fama do cônjuge, cujo conhecimento posterior torna a vida em comum insuportável ao cônjuge enganado (CC, art. 1.557, I).  São exemplos disso: a mulher que, acreditando ter casado com o dócil Caim, casa, em decorrência de um fraterno ardil, com o irascível irmão gêmeo univitelino Abel; ou então a mulher que, após o casamento, descobre que o marido Valdemar, antes do casamento, frequentava estabelecimentos destinados ao público LGBT travestido de drag queen e que, nas horas vagas, era um, digo, “uma” massagista que atendia pelo nome Penélope . Tratam-se de erros essenciais sobre a identidade (error in persona) e sobre as qualidades (error qualitatis), respectivamente, desses cônjuges.

Já a segunda hipótese diz respeito à ignorância de crime anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum (CC, art. 1557, II). Imagine, por exemplo, uma mulher de rígidos princípios morais que acaba de se  casar com um próspero e idôneo empresário, e que, logo após o casamento, na intimidade do lar, descobre que o marido, no passado, foi um cruel assassino.  A decepção pela ocultação intencional de fatos tão relevantes a respeito da vida pregressa do homem com quem casou, a repulsa pelo passado cruel e a incerteza quanto a um futuro mental e fisicamente íntegro por si só já dão a exata medida da insuportabilidade de uma vida em comum para esse casal.

E a terceira e última hipótese refere-se à ignorância de erro irremediável quanto à saúde da pessoa do outro cônjuge. Nessa hipótese, considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência, ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de por em risco a saúde do cônjuge ou de sua descendência (CC, art. 1.557, III). Imagine, por exemplo, um infeliz soldado cujo órgão sexual simplesmente desapareceu durante o explosivo transporte de uma bomba em seu colo, ou, então, um cantor com AIDS, cuja vida anterior ao casamento era regrada pela trindade “sex drugs  & rock’n’roll”. A impotência sexual (impotentia coeundi) e as moléstias graves capazes de colocar em risco não apenas o outro cônjuge, mas, também, a respectiva prole, são exemplos sintomáticos desse tipo de erro.

De tudo o que foi dito, pouco importa que o tal do Caim prometa, prostrado sob a cúpula da Basílica de São Pedro, que será tão bom e tão dócil quanto o irmão Abel; ou, então, pouco importa que o tal do Valdemar justifique o passado repleto de plumas e paetês com a revelação de que foi a musa, digo, o “muso” inspirador de uma das músicas da divertida banda de rock pop carioca Blitz. De igual modo, pouco importa que o tal empresário de passado criminoso tenha liquidado a respectiva dívida para com a sociedade e tenha conquistado a patente de general no Exército da Salvação, ou, então, que o infeliz soldado, provavelmente oriundo das fileiras da L’armatta Brancaleone,  acene com a possibilidade de adquirir, em suaves prestações, uma prótese digna de causar inveja ao — por muitos invejado — ator John Holmes; ou, ainda, pouco importa que aquele cantor de rock’n’roll  passe a entoar, de cinco em cinco minutos, após o casamento, o clássico gospel O Sangue de Jesus tem Poder e prometa, nas escadarias da Candelária, batizar o seu primogênito de Jontex!

O que importa realmente é que houve, em todos esses casos, erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge, e que esse tipo de erro, desde que desconhecido pelo cônjuge enganado e desde que, ao ser revelado ou descoberto, torne a vida em comum insuportável, caracteriza vício da vontade, que é um dos motivos ensejadores da decretação da nulidade de casamento (CC, art. 1.566).

Oportuno se faz ressaltar uma particularidade de capital importância a respeito desse tema. Já era sabido, desde a época do sábio rei Salomão, que para tudo há o respectivo momento apropriado.  Nesse sentido, o Antigo Testamento, em Eclesiastes 3, diz com propriedade que há o tempo apropriado para nascer e morrer, para plantar e colher, e até mesmo  para amar e odiar. Aliás, não é à toa que os integrantes do psicodélico conjunto de folk rock estadunidense The Byrds , inspirados na sagrada Bíblia, gorjeavam alegremente na década de 60: “to everything there is a season… a time to be born, a time to die, a time to plant, a time to reap… a time of love, a time of hate”. Em relação aos vícios da vontade isso não é diferente, já que a própria legislação determina os momentos apropriados em que eles devem ser alegados.  No que concerne ao erro essencial sobre a pessoa, o prazo para ser intentada a ação de anulação do casamento é de três anos, contado da data da respectiva celebração (CC, art. 1560, III).

Enfim, se nos casamentos celebrados sob a Lei de Deus prevalecem os votos “até que a morte os separe”, não é de todo disparatado afirmar que nos casamentos mundanos prevalece, também, a máxima “até que os erros, inclusive aqueles essenciais sobre a pessoa do outro cônjuge, os separe”!

Por José Ricardo Armentano, Advogado da Morad Advocacia Empresarial