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14 de agosto de 2019 | Morad

O tabagismo e a responsabilização da indústria tabagista

O tabagismo e a responsabilização da indústria
O tabagismo e a responsabilização da indústria

 

Eis aí um assunto atual e preocupante: o tabagismo! E a razão disso é muito simples. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o tabagismo, além de ser a principal causa de morte evitável[i],é responsável pelo desenvolvimento de uma infinidade de doenças, dentre as quais se destacam o câncer, o enfisema pulmonar e o acidente vascular cerebral (AVC)! E para piorar ainda mais esse cenário, o fumante passivo corre tantos riscos quanto o tabagista!

Pois é! Houve uma época em que o tabaco já foi considerado uma panaceia capaz de curar até mesmo a peste bubônica. Também houve outra época em que o consumo do tabaco conferia um ar de autoridade e intelectualidade ou até mesmo de rebeldia para aqueles que o consumiam. Personagens fictícios, como o célebre detetive Holmes, do escritor Doyle, ou personagens da vida real, como o célebre psicanalista Sigmund Freud ou o controvertido guerrilheiro Che, são um exemplo disso ao longo do tempo. Aliás, a imagem desse conhecido revolucionário degustando um legítimo habano é uma prova cabal disso. Fumar, em um passado não tão distante assim, também era considerado algo glamouroso. Um bom exemplo disso eram os atores hollywoodianos das décadas de 50 e 60. Por exemplo, a personagem Holly, eternizada pela lindíssima atriz Audrey Hepburn, no icônico filme Bonequinha de Luxo, segurando charmosamente uma longa piteira, sintetiza perfeitamente todo o glamour que o ato de fumar envolvia. Também houve uma época em que o consumo do tabaco era intensa e agressivamente estimulado por propagandas que vendiam o fumo como um fator de superioridade e sucesso ou até mesmo de esperteza. Aliás, quem não se lembra das cativantes e bem elaboradas propagandas dos populares cigarros da marca hollywood da década de 70, repletas de cenas de ação e recheadas de gente bonita e bem sucedida; ou do viril e imponente cowboy que encarnava o personagem Marlboro Man nas propagandas dos cigarros da Philip Morris; ou, então, da icônica McLaren vermelha e branca do genial e lendário piloto de F1 Senna no início dos anos 90? Ou mesmo da maliciosa propaganda dos cigarros Vila Rica, estrelada pelo eterno “canhotinha de ouro” da Copa de 70, cujo serendiptismo consolidou a famosa Lei de Gerson?

Pois é! Muito fumo queimou, ou melhor, muita fumaça foi inalada desde então, até que, a partir do início da década de sessenta, começaram a surgir nos EUA estudos científicos a respeito dos malefícios causados pelo tabaco. Constatou-se, ao longo do tempo, que o tabagismo estava diretamente relacionado com o surgimento de diversas doenças, tais como, por exemplo, o câncer de pulmão. A partir daí, várias medidas passaram a ser paulatinamente implementadas ao redor do mundo para o combate desse mal, tais como a proibição do fumo em voos domésticos, a proibição de propagandas nos meios de comunicação etc.

No Brasil não foi diferente, já que, além dessas, várias outras medidas também passaram a ser adotadas nesse sentido, tais como advertências do Ministério da Saúde estampadas em maços de cigarro a respeito dos malefícios do tabagismo; restrições de ordem legal, proibindo o ato de fumar em ambientes fechados etc. Aliás, é importante ressaltar que os esforços e os progressos alcançados pelo Brasil na luta contra o tabagismo foram reconhecidos pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS).[ii]

E apesar de todos esses esforços — não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro —, a OMS ainda classifica o tabagismo como uma verdadeira epidemia global. Conforme levantamento por ela realizado em 2018, uma em cada cinco pessoas no mundo fuma![iii]

Com efeito, é muito prazeroso — pelo menos para quem fuma —, nos dias frios de inverno, apreciar, por exemplo, um aromático fumo queimando lenta e delicadamente em um fornilho de um cachimbo manufaturado a partir de uma madeira densa e resistente, tal como o briar, juntamente com um bom vinho do porto ou mesmo um aromático conhaque; ou, então, nos dias tépidos de outono, degustar um bom habano, acompanhado de um saboroso rum envelhecido em um tonel de carvalho, digno do célebre escritor Hemingway. Chega a ser uma experiência exotérica, por exemplo, vislumbrar a fumaça de um cigarro subir em direção ao infinito, tal qual uma metáfora da elevação espiritual. Convenhamos, essa analogia está muito mais para uma indigência espiritual do que, propriamente, um processo cognitivo destinado a estabelecer generalizações no âmbito da espiritualidade.

Mas a pergunta que daí se sobressai é: o fumo faz mal? E a resposta é bem simples: faz! Mas, se ele é maléfico, porque é, então, permitido? Pois é! Eis aí uma questão delicada e até mesmo complexa. O consumo do tabaco, além de ser socialmente aceito, ou melhor, ser tolerado mediante certas condições e observadas determinadas restrições, não é ilícito. Aliás — sob o pretexto de combate ao respectivo consumo —, constitui importante fonte de arrecadação de tributos. Por conta disso, o tabaco situa-se no campo do livre arbítrio de quem o consome.

Além disso, se usado com moderação, o malefício provavelmente poderá ser situado em um patamar próximo de um saboroso torresmo acompanhado de um Chopp gelado durante uma empolgante partida de futebol entre os arquirrivais Palmeiras e Corinthians, ou, então, de um calórico milk-shake de chocolate acompanhado de uma porção crocante de fritas e um gorduroso hambúrguer — bem passado — repleto de queijo e encharcado com a quinquagésima sétima variedade do ketchup do tal do Henry John.

Mas e aí? Como ficam as pessoas que, seduzidas pela aura atrativa do fumo — decorrente das propriedades inerentes às substâncias que o compõe, bem como fomentada, atualmente de forma velada, pela indústria que o explora—, são incapazes de controlar a própria moderação, de modo a sucumbir ao uso habitual e a desenvolver, consequentemente e ao longo do tempo, graves problemas de saúde?

Pois é! O Poder Judiciário, no que concerne a esse tipo de questão, tem se posicionado de forma contrária aos interesses dos tabagistas.

De um modo geral, as questões judiciais que têm por objeto a responsabilização da indústria do tabaco por toda essa sorte de malefícios são usualmente fundamentadas na legislação ordinária que regula a matéria pertinente à responsabilidade civil, bem como na Lei nº 8.078/90, comumente conhecida como Código de Defesa do Consumidor, cujo regramento tem por objetivo, dentre outros, proteger a saúde e a segurança do consumidor. Aliás, sob a óptica do consumidor, o cerne da questão está consubstanciado na colocação de um produto defeituoso e nocivo no mercado, que põe em risco a saúde e a segurança daquele que o consome.

Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), contudo, o tabaco não é passível de ser considerado um produto defeituoso, vez que a sua nocividade é amplamente conhecida e reconhecida — aliás, segundo essa corte superior, faz parte do senso comum —, razão pela qual o consumidor, quando dele se utiliza, o faz por livre arbítrio, assumindo para si, em razão disso, todos os riscos daí decorrentes. A esse respeito, o Ministro do STJ, Luiz Felipe Salomão, pondera que “o cigarro é um produto de periculosidade inerente e não um produto defeituoso, nos termos do que preceitua o Código de Defesa do Consumidor” (cf. REsp. 1.113.804/RS; DJe 24/06/10). Vale dizer que para o STJ, por exemplo, não é correto, de modo direto e exclusivo, imputar a morte de um fumante ao fabricante de cigarros, cuja atividade é reconhecidamente lícita. De acordo com o entendimento dessa corte superior, o desenvolvimento de uma doença associada ao tabagismo não é imediato e comumente decorre do uso excessivo e habitual do tabaco, por longo período de tempo, associado a outros fatores de igual modo relevantes, inclusive de ordem genética. Segundo o STJ, a periculosidade é inerente ao fumo e quem dele se utiliza tem o livre arbítrio para parar ou persistir no consumo.

Basicamente o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao vendedor de produtos derivados do tabaco. Mais especificamente, o tabagista que, por livre e espontânea vontade, passa a consumir esse tipo de produto, tornando essa prática habitual, mesmo sabendo de todos os malefícios a ele inerentes, não pode pretender, quando lhe for necessário ou conveniente, também atribuir responsabilidade pelas consequências da sua conduta a quem lhe vende o produto e que exerce atividade lícita e regulamentada pelo Poder Público, devidamente fiscalizada pelas autoridades competentes.

Se na derradeira instância, isto é, no STJ, a situação do tabagista não está, atualmente, muito animadora, o mesmo ocorre, com raras exceções, nas 1ª e 2ª instâncias.

O Tribunal de Justiça de SP (TJ-SP), por exemplo, vem rejeitando, de um modo geral, pedidos indenizatórios de consumidores, fundamentando as respectivas decisões na ausência de demonstração de nexo causal entre a doença do tabagista e o cigarro produzido pela indústria que produz esse tipo de produto, bem como na ausência de conduta ilícita ou de dever de informar por parte dela (cf. TJ-SP; Apelação 0005881-87.202.8.26.0001; Rel. Des. Alexandre Lazzarini; j. 07/07/15). Segundo o tribunal paulista, embora a doença possa ter se originado do consumo de tabaco, o tabagista tem papel primordial no desenvolvimento desse hábito (cf. TJ-SP; Apelação 0033247-23.2009.8.26.0562; Rel. Des. Carlos Garbi; j. 05/11/13). Demais disso, para essa corte, os malefícios do fumo sempre foram conhecidos (cf. TJ-SP; Apelação 0000893-95.1999.8.26.0302; Rel. Des. Coelho Mendes; j. 24/09/13) e a publicidade veiculada pela indústria tabagista não se ostenta abusiva, tampouco enganosa, a ponto de compelir o consumidor à uma condição de uso imoderado (cf. TJ-SP; Apelação 9061453-28.2009.8.26.0000; Rel. des. Cláudio Godoy; j. 08/10/13).

Especificamente no que concerne ao dever de informar sobre os males do tabagismo, bem como sobre a propaganda promovida pela indústria tabagista, o TJ-RJ, por meio de sua 6ª Câmara Cível, manifestou o entendimento segundo o qual não havia dever jurídico de informação que impusesse à indústria do fumo uma conduta diversa daquela por ela praticada em décadas passadas. Para essa câmara julgadora, afirmar que o homem não age segundo o seu livre-arbítrio em razão de suposta “contaminação propagandista”, arquitetada pela indústria do fumo, é o mesmo que “afirmar que nenhuma opção feita pelo homem é genuinamente livre, porquanto toda escolha da pessoa, desde a compra de um veículo a um eletrodoméstico, sofre os influxos do meio social e do marketing” (cf. TJ-RJ; Embargos Infringentes 0080254-16.2004.8.18.0001; Rel. Des. Juarez Folhes; j. 10/04/14).

Diametralmente contrária a esses entendimentos posicionou-se a 9ª Câmara Cível do TJ-RS. Mais especificamente, essa câmara, ao julgar um caso análogo, houve por bem condenar um fabricante de produtos derivados de tabaco levando em conta apenas um juízo de “séria probabilidade” de nexo causal. Impõe-se ressaltar que nesse caso foi produzida, de forma antecipada, robusta prova pericial a respeito da enfermidade do tabagista, bem como foram carreados aos autos expressivos elementos relacionados ao tema, de modo a amparar, com propriedade, a afirmação de que 87,5% dos casos envolvendo a enfermidade dele tinham como causa o tabagismo. Demais disso, para essa judiciosa câmara, não há como dar relevância ao livre-arbítrio em casos dessa natureza, principalmente em um país onde a idade média de iniciação ao tabaco se dá em torno dos 13 anos de idade, oportunidade em que a respectiva capacidade de discernimento está comprometida. De acordo com essa câmara julgadora, consolidada a dependência no organismo, o tabagista torna-se um prisioneiro do tabaco, um refém de seu vício, de modo a comprometer-lhe, consequentemente, a respectiva capacidade de decisão quanto ao abandono desse nocivo hábito de consumo (cf. TJ-RS;Apel. Cível 0142852-52.2014.8.21.7000; Rel. Des. Eugênio Facchini Neto; j. 18/12/18).

Claro está que o posicionamento do STJ, a respeito da inexistência de responsabilidade do fabricante de produtos derivados do tabaco pelas doenças do tabagista, vem se solidificando cada vez mais! Depreende-se, daí, que a mudança desse cenário está diretamente associada ao fortalecimento das teses defendidas pela mencionada câmara julgadora gaúcha a respeito da “substancial probabilidade” de existência de nexo causal envolvendo esse tipo de produto e os malefícios que o respectivo consumo causa, e da degradação do discernimento do tabagista em razão das peculiaridades que o envolvem — sejam elas de ordem social, cultural etc. —, e o consequente comprometimento do respectivo discernimento a respeito desse tema. Não se trata, à evidência de uma empreitada fácil, mas, mesmo assim, todos os esforços são necessários e válidos na árdua e difícil luta pelo direito de se exigir a correspondente reparação da indústria tabagista pelos malefícios decorrentes do consumo do tabaco.

[i]https://www.cancer.org.br/sobre-o-cancer/prevencao/tabagismo/ (acesso em 02/08/19, às 10h35)

[ii]https://nacoesunidas.org/oms-reconhece-avancos-do-brasil-no-combate-ao-tabaco/ (acesso 02/08/19, às 16h32)

[iii]https://nacoesunidas.org/oms-1-em-cada-5-pessoas-no-mundo-fuma/ (acesso 2m 02/08/19, às 10h40)

 

José Ricardo de Almeida

Advogado no Escritório Morad Advocacia Empresarial

 

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