Segundo a escritora peruana Glória kirinus, “palavreira de nascimento”, a chuva , quando chove a cântaros, lava a alma e abençoa as plantações, fazendo brotar a esperança
Mas, o que deveria ser uma benção dos céus, torna-se, nos grandes centros urbanos, um grave e complicado problema. Aliás, tal assertiva é de fácil constatação, afinal, basta um pé-d’água, ou seja, uma chuva breve, forte e repentina, para o trânsito ficar caótico, para os semáforos entrarem em pane e para que as águas pluviais se acumulem ao longo das vias públicas. Por mais complicado que tudo isso possa ser, os problemas daí decorrentes situam-se, na maioria das vezes, no campo dos aborrecimentos e dos dissabores.
Porém, quando essa chuva forte ocorre de forma prolongada, as dimensões desse problema atingem proporções catastróficas: enxurradas que a tudo e a todos arrastam, enchentes e inundações que invadem moradias e estabelecimentos, destruindo e inutilizando bens e equipamentos fundamentais para a subsistência digna e para a execução de atividades empresariais. Mas não é só isso! Além dos danos, sejam eles de ordem material ou moral, eventos dessa natureza acarretam sérios e preocupantes problemas no âmbito da saúde pública relacionados às doenças infectocontagiosas, tais como a febre tifoide, a leptospirose, dentre outras.
Mas, afinal, por que as enchentes e as enxurradas ocorrem? E de quem é a culpa disso? E, se há culpa, de quem é a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos daí decorrentes? Dos municípios, que são os entes administrativos responsáveis pelo saneamento básico, cujas atividades abrangem, inclusive, a implementação e a execução de serviços de drenagem e de manejo de águas pluviais? Ou dos munícipes que ocupam ou utilizam de forma irregular os espaços urbanos, desobedecendo as respectivas posturas municipais e a legislação pertinente ao meio ambiente?
As respostas para essas indagações, infelizmente, não são tão simples assim!
Para uma melhor compreensão desse assunto, oportuno se faz delinear, ainda que superficialmente, os motivos ensejadores das enchentes e das enxurradas, cujas consequências invariavelmente são danosas. Assim, podemos dizer, de forma simplista, que os principais motivos para essas ocorrências constituem-se em causas naturais e causas antrópicas. Causas naturais consistem em fenômenos da natureza, tais como condições meteorológicas desfavoráveis, inundações em leitos de rios, cheias de grandes proporções etc. Já as causas antrópicas são aquelas relativas às modificações provocadas pelo homem no meio ambiente, tais como a interferência humana em cursos d’água, o mau uso do espaço urbano, a poluição e o consequente comprometimento dos sistemas de drenagem, a ineficiência e a inadequação desses sistemas ou até mesmo a inexistência deles.
Diante desse panorama, vislumbram-se, de um modo geral e simplista, duas hipóteses: a primeira delas, consistente naqueles eventos danosos decorrentes de causas naturais, assim compreendidos aqueles decorrentes da natureza, extraordinários e imprevisíveis; e a segunda, consistente naqueles eventos danosos provocados pelo próprio homem.
Na primeira hipótese, ou seja, nas inundações e demais fenômenos decorrentes de causas naturais, não há que se falar em culpa de quem quer que seja. Trata-se de eventos extraordinários e imprevisíveis, situados no campo da força maior, razão pela qual não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito entre os danos decorrentes desse tipo de evento e o comportamento da municipalidade ou mesmo dos munícipes.
Já em relação à segunda hipótese, em que as inundações e demais acontecimentos dessa natureza decorrem de causas provocadas pelo homem (antrópicas), esse tipo de questão adquire contornos diferentes. Se em um filme noir o mordomo é sempre o culpado, o mesmo não ocorre com a administração pública em relação aos problemas envolvendo enchentes e inundações. Vale dizer que nem sempre a administração pública é a protagonista do “filme”. Conforme já salientado anteriormente, embora o município seja o responsável pela implementação e execução de serviços de drenagem e escoamento, bem como pela manutenção da estrutura utilizada para tal finalidade, ainda assim a responsabilidade dele nesse tipo de evento não é objetiva, isto é, independente de culpa. Para que haja o dever de indenizar, impõe-se que seja caracterizada também a respectiva omissão no tratamento desse assunto. Por exemplo: enchentes poderiam ser evitadas se houvesse limpeza adequada de bueiros, galerias pluviais etc. E é justamente da conjunção do evento danoso (enchente, alagamento etc.) com o nexo de causalidade (relação de causa e efeito) entre os danos sofridos e a conduta omissa do ente administrativo — que ciente da gravidade e da constância desse tipo de problema, nada faz para resolvê-lo, tampouco para preveni-lo ou atenuá-lo — que surge o dever de indenizar!
Nem sempre é possível caracterizar a omissão e a consequente responsabilidade da administração pública em casos dessa natureza, principalmente quando os danos decorrem de fatos extraordinários e imprevisíveis, ou decorrem do comportamento irregular de quem experimentou esses danos. Em relação a esses casos extraordinários e imprevisíveis, a administração pública tem como argumento favorável aquilo que a doutrina alienígena costuma definir como Act of God. Pensando bem, isso está mais para um act of the devil do que propriamente um ato, digamos, divino. Independentemente disso, o que importa, de fato, nesse tipo de questão, é que as ocorrências extraordinárias e imprevisíveis situam-se no campo da força maior. Nessas circunstâncias, não há que se falar em culpa, qualquer que seja a modalidade, tampouco no dever de ressarcimento de danos porventura decorrentes desse tipo de acontecimento.
Não haverá, também, o dever de indenizar, quando o dano, independentemente da atuação razoável e diligente da administração pública, não possa ser por ela impedido, ou, então, quando decorrer do comportamento irregular de quem o sofreu. Tal hipótese, aliás, é de fácil compreensão. Basta imaginar, por exemplo, um munícipe que erigiu a respectiva residência em área de preservação permanente — assim designada por estar naturalmente sujeita a inundações —, e que, em razão dos danos decorrentes do alagamento dessa região, resolve pleitear o correspondente ressarcimento perante o município. Ora, nesse caso, além de não haver por parte da municipalidade o dever legal reparar, era impossível impedir a ocorrência de eventos danosos em uma região com tal característica, qualquer que fosse a providência tomada. Nessas condições, não há como se atribuir à administração pública qualquer tipo de responsabilidade pelos danos decorrentes do comportamento irregular de quem os experimentou.
Verifica-se, portanto, de um modo geral, que administração pública somente será passível de ser responsabilizada pelos danos decorrentes de enchentes, inundações e demais fenômenos dessa natureza nos casos em que for comprovada a respectiva omissão, tanto para resolver, quanto para prevenir ou atenuar esse tipo de problema. Assim, demonstrada a existência do evento danoso (enchente, alagamento, enxurrada etc.) e a relação de causa e efeito entre o dano experimentado e a conduta omissa de quem deveria tê-lo prevenido ou, ao menos, atenuado, haverá consequentemente o dever de indenizar, tanto aquele que perdeu os respectivos bens pessoais ou adoeceu por conta de uma enfermidade decorrente desse tipo de evento, quanto o empresário que perdeu insumos, estoques e respectivos maquinários destinados à execução da sua atividade empresarial. O dever de indenizar, nesse caso, não abrange apenas aquilo que foi perdido ou destruído, mas alcança, também, as despesas realizadas com remédios e médicos, os prejuízos decorrentes daquilo que se deixou de ganhar, bem como os danos de ordem moral, decorrentes dos dissabores que extrapolam os aborrecimentos cotidianos.
José Ricardo Armanetano
Advogado no Escritório Morad Advocacia Empresarial
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