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3 de julho de 2019 | Morad

A recusa das chaves pelo locador

A Recusa das Chaves pelo Locator
A Recusa das Chaves pelo Locator

Imagine, por exemplo, que um locatário, por não mais lhe convir a locação de um determinado bem imóvel, resolva — durante a vigência contratual ou, então, por ocasião do respectivo término — cientificar o locador, com a devida antecedência, a respeito da sua intenção de por um fim ao respectivo contrato.

Imagine, também, que o locador, na data ajustada para a vistoria do imóvel e respectiva devolução das chaves, se recuse a recebê-las, justificando tal conduta com toda a sorte de motivos, tais como: o imóvel está mal conservado; o vidro da janela está arranhado; o piso de tábuas de madeira está descorado por conta da incidência de raios solares; ou a parede da sala está furada por conta de um infame prego utilizado durante a locação para dar sustentação a um imponente quadro da Nossa Senhora de Guadalupe.

Imagine, ainda, que o locatário demonstre cabalmente que o imóvel, ressalvados os desgastes decorrentes do uso normal, foi bem conservado, que os vidros já estavam arranhados desde o inicio da locação, que o piso já estava descorado e que o tal do prego já estava encravado na parede. Imagine, por fim, que o locatário, com a finalidade de por um fim nessa desgastante situação, manifeste o ânimo de ressarcir tais prejuízos e que o locador, mesmo assim, mantenha-se irredutível quanto ao recebimento dessas benditas – pensando bem, malditas para o locatário – chaves!

E aí? O que fazer diante desse tipo de situação?

Impõe-se ressaltar, antes de qualquer consideração a respeito desse tipo de questão, que a legislação pertinente assegura ao locatário o direito de devolver o imóvel locado se ele assim desejar e quando ele bem entender. Na hipótese de devolução antecipada, antes do esgotamento do prazo contratual, ele deverá, para tanto, arcar com o pagamento da multa pactuada — proporcionalmente ao período em que o contrato foi cumprido — ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada (cf. Lei nº 8.245/91, art. 4º).

Nessa toada, qualquer que seja a hipótese, o locador não pode simplesmente recusar o recebimento das chaves. Ainda que a vigência do contrato não tenha se esgotado ou, então, ainda que tenha ocorrido no imóvel locado um verdadeiro apocalipse zumbi, mesmo assim a lei não lhe confere o direito de recusar o recebimento das chaves e, com isso, prolongar a locação.

Oportuno se faz ressaltar que o estado do imóvel é, no mais das vezes, o grande motivador para esse tipo de problema. E a razão disso até é compreensível, principalmente naqueles casos em que o imóvel a ser devolvido se encontra em condições deploráveis, de modo a demandar tempo e gastos consideráveis para a respectiva reparação. Na visão do locador, é natural e justo que o locatário faça os devidos reparos e remunere a inatividade do imóvel durante o período em que perdurar os trabalhos de reparação. Já na visão do locatário é comum a sensação de que os desgastes decorrentes do uso normal do imóvel estão sendo indevidamente computados como danos a serem reparados ou, então, que os mínimos danos porventura existentes estão sendo superestimados pelo locador.

Para minimizar ou mesmo evitar esse tipo de conflito, fundamental se faz, qualquer que seja o tipo de locação, a documentação da real situação do imóvel por ambas as partes, tanto na entrega inicial do bem, quanto na respectiva devolução. Isso é feito usualmente por meio de um documento chamado “termo de vistoria”, rubricado e assinado pelas partes, onde a situação do imóvel é detalhadamente descrita e fotografada. Trata-se, na realidade, de um dever legal do locador, já que a legislação pertinente o obriga a fornecer uma descrição minuciosa do estado em que se encontra o imóvel objeto da locação, caso seja solicitada pelo locatário, com a indicação de todos os defeitos porventura existentes, quando da respectiva entrega (cf. Lei 8.245/91, art. 22).

Vale dizer que essa vistoria é fundamental para que o locatário, finda a locação, possa demonstrar que o imóvel, excetuando-se os desgastes decorrentes do respectivo uso normal, está sendo restituído no mesmo estado que foi recebido no início da locação. É, de igual modo, fundamental para que o locador possa embasar eventual pedido de ressarcimento por danos verificados no imóvel locado por ocasião da respectiva devolução, já que é dever do locatário restituir a coisa locada no mesmo estado em que foi recebida (cf. Lei nº 8.245/91, art. 23, inciso III).

Mas, o que fazer se o locador, notificado e procurado pelo locatário no prazo da notificação para a restituição do bem locado, recusar o recebimento das respectivas chaves? Bem, diante desse panorama, não restará alternativa ao locatário senão consigná-las judicialmente, na forma da legislação processual civil (cf. CPC, artigos 539 e 542, inciso I).

Mais especificamente, o locatário, por meio de ação de consignação, pleiteará judicialmente o depósito das chaves, bem como o depósito da multa contratual porventura devida em caso de devolução antes do término do respectivo contrato. O montante correspondente ao último aluguel, caso devido, também deverá ser depositado judicialmente. É importante ressaltar que, em caso de recusa do locador quanto ao recebimento das chaves, o pagamento do aluguel deverá ser realizado até a data em que a ação consignatória foi proposta, vez que é a partir da propositura dessa ação que se libera o locatário da obrigação de remunerar o uso do imóvel (cf. TAC-SP; Apelação c/ rev. 398.045; 10ª Câm.; rel. Juiz Euclides de Oliveira; j. 11/05/94; JTA / Lex 152/507).

O locador poderá contestar essa ação, podendo alegar, para tanto, as matérias relacionadas no artigo 544 da legislação processual civil (CPC), tais como a inexistência de recusa quanto ao recebimento das chaves, justa recusa etc. É importante ressaltar, contudo, que as alegações consistentes na existência de eventuais valores a serem pagos pela locatária, ou a existência de reparos a serem feitos no imóvel locado, por si só, não justificam, tampouco legitimam a recusa do locador quanto ao recebimento das respectivas chaves, em virtude de direito potestativo conferido ao locatário por força do artigo 4º da Lei nº 8.245/91, o qual não permite que ele seja obrigado a permanecer no imóvel, pagando aluguel contra a sua vontade. Eventuais créditos decorrentes da relação locatícia deverão ser reclamados pelo locador por meio de ação própria (cf. TJ-SP; Apelação Cível 1021207-31.2016.8.26.0114; 27ª Câm. de Direito Privado; rel. Mourão Neto; j. 24/07/18).

Se a ação for julgada procedente, as obrigações do locatário em relação à locação serão declaradas extintas, com a consequente condenação do locador ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios (cf. CPC, art. 546).

Mas e o locador nessa história toda? E se o locatário, de fato, tiver transformado o imóvel locado em uma verdadeira zona de guerra, capaz de fazer inveja ao cenário final do filme O Resgate do Soldado Ryan, do célebre cineasta Steven Spielberg?

A esse respeito, importante se faz ressaltar, mais uma vez, que o locador não pode recusar a restituição do imóvel. Demais disso, será nula de pleno direito e, consequentemente, não surtirá nenhum efeito jurídico entre as partes, eventual cláusula contratual dispondo que a devolução do imóvel somente será considerada efetiva após a realização de todos os reparos necessários à recomposição do imóvel ao mesmo estado em que se encontrava por ocasião do início da locação (cf. Lei 8.245/09, art. 45). Diante desse panorama, a melhor alternativa para o locador será consignar expressamente no documento destinado a formalizar a entrega das chaves que o recebimento delas não implica liberação do locatário quanto às respectivas responsabilidades contratuais, em especial aquelas atinentes à restituição do imóvel no mesmo estado em que foi recebido, e que os prejuízos decorrentes dos danos verificados no imóvel por ocasião da respectiva devolução deverão ser ressarcidos pelo locatário.

Enfim, de tudo o que foi dito, impõe-se destacar que se porventura houver algum dano a ser ressarcido ou algum débito pendente a ser liquidado — tanto por conta de um aluguel que ainda não foi pago, quanto por alguma dívida acessória que ainda não foi liquidada —, os montantes daí decorrentes deverão ser reclamados e cobrados por meio de ação própria, vez que motivações dessa natureza são imprestáveis para o locador justificar eventual recusa quanto ao recebimento do imóvel locado.

 

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