Se a promessa de recompensa, no âmbito do Código Civil, obriga quem prometeu, no âmbito das relações de consumo o tratamento é semelhante, já que a oferta realizada pelo fornecedor o obriga quanto ao respectivo cumprimento. Aliás, é o que se depreende do artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o qual dispõe, em linhas gerais, que toda a oferta, qualquer que seja a forma ou meio de divulgação, obriga o respectivo fornecedor, seja ele de produtos ou de serviços.
Mas não é só isso. O artigo 35 do mencionado código é claro ao dispor que se houver recusa quanto ao cumprimento da oferta, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha, exigir do fornecedor o respectivo cumprimento forçado ou, então, aceitar um produto ou prestação de serviço equivalente ou, ainda, romper o contrato, com a consequente devolução das quantias porventura antecipadas e a sujeição do fornecedor ao ressarcimento das respectivas perdas e danos.
Nunca me esqueço de um episódio ocorrido alguns anos atrás em uma loja especializada em relógios e algemas, digo, alianças, situada em um conhecido shopping center da capital paulista. Eu e os meus amigos estávamos voltando de uma animada sessão de cinema, extasiados com a furiosa velocidade que o respectivo protagonista pilotava um imponente Nissan Skyline, quando um deles resolveu bisbilhotar a vitrine dessa loja igualmente imponente.
Lá pelas tantas esse amigo vislumbrou um relógio cuja diagramação dos ponteiros e o design arrojado do respectivo mostrador eram, de fato, engenhosos e criativos. Esse relógio, aliás, estava à venda pela bagatela — na visão dele — de R$ 300. Ele não teve dúvida: encantado com a oportunidade que se descortinava diante dele, dirigiu-se a jovem e sedutora vendedora dessa loja — que era a cara da belíssima atriz e modelo britânica Cara Delevingne, — e pediu para ver o tal relógio. É bem verdade que ele não sabia, ao certo, se apreciava a beleza do relógio ou da vendedora, já que ela era infinitamente mais bonita do que o próprio relógio.
Conversa vai, conversa vem, e esse amigo, animadinho tal qual um adolescente diante daqueles sites da internet que começam com a letra “x”, resolveu finalmente comprar o tal relógio. Porém, ao passar o cartão de crédito na leitora, percebeu que o preço cobrado era quase o dobro daquilo que estava indicado na respectiva etiqueta. Imediatamente ele, de forma gentil, alertou a doce vendedora sobre o engano havido no preço. A vendedora, cujo semblante era amável e deslumbrantemente sedutor, transformou a respectiva fisionomia, como que por encanto, para algo compatível com aquela encantadora — no sentido maligno do verbo encantar — bruxa que convenceu a adorável personagem dos contos de fada, a bela adormecida, a dar uma inocente mordida naquela maçã repleta de agrotóxicos, chumbo, mercúrio e outras coisas menos saudáveis. A vendedora então, com um olhar assustadoramente malévolo, passou a afirmar — com a mesma convicção que um político enaltece as respectivas virtudes pessoais — que o preço informado era R$ 500 e que o nosso amigo é que estava equivocado a respeito dessa questão.
O próprio gerente da loja, que resolveu dar as caras assim que a coisa toda começou a ficar tensa, passou a insinuar, muito sutilmente, que o nosso amigo estava, na verdade, tentando distorcer a realidade, com a finalidade de obter vantagem às custas da pobre vendedora. Confesso que fiquei passado com essa situação, vez que eu também havia visto, com os meus próprios olhos, a tal etiqueta de R$ 300 pendurada no relógio. E foi justamente nesse momento que eu percebi que essa etiqueta estava descuidadamente jogada em um canto do balcão interno da loja. Manifestei-me educadamente em relação a isso, e pedi ao solerte gerente verificar a tal etiqueta, com a finalidade de resolver, de uma vez por todas, o impasse em questão.
Pois é! Esse gerente, pelo jeitão da coisa, acreditava que o nosso amigo estava mesmo tentando tirar vantagem da inocente vendedora, já que o olhar que ele dirigiu a ela após pegar essa etiqueta foi, certamente, muito mais furioso do que todos os olhares dos adversários do protagonista do filme por nós assistido. O tal gerente, correta e secamente, apenas disse a vendedora: você sabe o que fazer. E não é que ela soube mesmo! Retificou o valor para R$ 300, os quais, por sua vez, foram pagos pelo nosso amigo com imensa satisfação.
Ao ser indagado sobre esse tenso episódio, esse amigo foi claro: se a vendedora houvesse, logo no início, revelado o equivoco e se desculpado pelo inconveniente, a aquisição do relógio teria sido tranquilamente realizada pelo preço original. Porém, diante da falta de boa-fé dessa maliciosa vendedora, o nosso amigo entendeu por bem fazer valer os seus direitos de consumidor.
Mas, afinal, as regras contidas nos mencionados artigos 30 e 35 do CDC são absolutas? Ou seja, mesmo que a loja, no episódio em questão, tivesse se equivocado, ainda assim ela estaria obrigada a cumprir esse tipo de oferta?
Eis aí uma questão assaz delicada! Mas, apesar disso, a resposta para tal indagação é, em tese, afirmativa. Em outras palavras, a loja está obrigada a cumprir aquilo que prometeu por força daquilo que dispõe o mencionado artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual toda informação ou publicidade de produtos ou serviços, suficientemente precisa, veiculada por qualquer meio ou forma de comunicação, obriga o fornecedor que a veiculou ou que dela se utilizou.
Imagine, contudo, a hipótese em que o gerente do episódio narrado, em vez de R$ 500, tivesse, por engano — mais especificamente, por um erro de digitação —, ofertado e divulgado o preço do malsinado relógio por R$ 5. E nessa hipótese, qual seria a solução? Eis aí uma questão mais delicada ainda! Enquanto que no episódio ocorrido com o meu amigo o preço pelo qual o relógio estava sendo ofertado era 40% mais barato, nessa outra hipótese o preço anunciado representava apenas 1% do respectivo valor.
Convenhamos, a questão oriunda do episódio vivenciado pelo meu amigo está inserida no âmbito da razoabilidade, afinal, não é algo incomum a venda de um produto ou a prestação promocional de um serviço com um desconto de 40%. Vide, por exemplo, as Black Fridays ou mesmo as liquidações realizadas após as festas natalinas ou em outras épocas específicas do ano.
Já essa outra hipótese deve ser tratada sob o prisma da boa-fé objetiva, vez que nela se evidencia, de forma cristalina, a existência de um erro tosco e escusável. E a razão disso é bem simples: nenhum fornecedor, em condições normais, anunciaria a venda de um produto por um preço abaixo do valor do respectivo custo, em flagrante prejuízo.
Nesse diapasão, a loja do episódio envolvendo o meu amigo, se fosse instada a cumprir aquilo que anunciou, dificilmente conseguiria escapar dessa obrigação, vez que a respectiva oferta, além de ter ensejado uma expectativa legítima, era plausível e continha um desconto aceitável no âmbito da razoabilidade, de modo a permitir a aplicação dos mencionados artigos 30 e 35 do CDC. Aliás, a esse respeito, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), ao tratar recentemente de caso semelhante, manifestou o entendimento de que não é possível o cancelamento de uma venda em razão de equivoco na divulgação do preço, vez que a oferta vincula o fornecedor, na forma do artigo 30 do CDC. Segundo essa corte, a legítima expectativa do consumidor deve ser considerada em casos dessa natureza (cf. TJ-SP, Agravo de Instrumento 2209833-34.2017.8.26.0000; j. 1º/03/18).
Já o fornecedor retratado nessa outra hipótese, por sua vez, caso fosse compelido pelo consumidor a cumprir a oferta defeituosa, dificilmente seria obrigado a cumpri-la, vez que ela, além de não estar situada no campo da plausibilidade em razão da desproporção entre o valor anunciado e o preço real do produto, decorreu de um erro visivelmente tosco e escusável, cujas circunstâncias fazem presumir a boa-fé de quem o praticou. Mas não é só isso. A exigência quanto ao cumprimento de uma oferta nesses moldes, além de comprometer o necessário equilíbrio das relações de consumo, escancaram a ausência da boa-fé objetiva do consumidor, de modo a afastar os rigores das disposições contidas nos mencionados artigos 30 e 35 do CDC. A esse respeito, o TJ-SP, com propriedade, já manifestou o entendimento de que o evidente erro grosseiro, apontado no preço ínfimo de bem de consumo durável, perceptível por qualquer consumidor, além de nitidamente incompatível com o valor de mercado do produto, não tem efeito vinculativo em relação à respectiva oferta (cf. TJ-SP, Apelação Cível nº 4003582-95.2013.8.26.0482; j. 16/07/14).
Assim, a regra relativa à obrigatoriedade da oferta — qualquer que seja a respectiva forma ou meio de divulgação —, delineada nos artigos 30 e 35 do Código de Defesa do Consumidor, não é absoluta, vez que não é aplicável aos casos em que a relação de consumo, contaminada por um erro escusável, não é pautada pelo princípio da boa-fé objetiva, que impõe aos envolvidos o dever de observar um comportamento ético e leal.
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