A Constituição Federal de 1988, assim como um grande edifício, foi construída sob alicerces que tem como função sustentar toda a estrutura edilícia e os princípios fundamentais, descritos logo em seu art. 1º, apresentam essa característica de firmamento onde todo o ordenamento jurídico Brasileiro se escora.
Entre os princípios fundamentais expostos, o princípio da dignidade da pessoa humana defende todos os sujeitos, ainda que estrangeiros em território nacional, o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, ou seja, preserva a dignidade do sujeito perante os outros e o Estado.
Prosseguindo na esteira dos direitos e alinhado com a dignidade da pessoa humana, a legislação pátria busca garantir e proteger os trabalhadores, como por exemplo assegurar condições mínimas de subsistência e dignidade. Um dos pontos mais importantes dessas proteções é a impenhorabilidade de parte dos salários, uma vez que tal medida é de suma importância para resguardar o mínimo existencial do trabalhador e de sua família. Ocorre que, o dinamismo social e a função do direito de perseguir as angustias dos cidadãos, vem surgindo uma tendência de relativização dessa impenhorabilidade, especialmente em casos de execução de créditos não alimentares.
O art. 7º, inciso X da Constituição Federal é responsável por positivar a impenhorabilidade salarial, onde estabelece que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: X – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa”. O objetivo óbvio dessa proteção é garantir que uma parte do salário permaneça intacto para assegurar a subsistência do trabalhador e de sua família, buscando assim proteger a dignidade da pessoa humana.
Importante mencionar que essa proteção não é absoluta, portanto passível de relativização e a própria Constituição dispõe acerca dessas exceções a impenhorabilidade, como nos casos de pagamento de pensão alimentícia. Ademais, a legislação infraconstitucional também prevê exceções, como na execução de créditos trabalhistas, fiscais e de créditos referentes a prestação de alimentos. Por outro lado, a relativização da impenhorabilidade salarial na execução de créditos não alimentares tem sido objeto de debate nas cortes.
Essa relativização da impenhorabilidade salarial vem sendo aplicada pelo Poder Judiciário para autorizar a penhora de parte do salário para quitar dívidas que não se enquadram nas exceções já mencionadas. Usualmente, tais situações ocorrem quando o devedor possui outros bens passíveis de penhora, mas opta por alegar a impenhorabilidade de seu salário como forma de se esquivar do pagamento e frustrar a execução e direito da outra parte, o que por óbvio vem sendo analisado pela corte superior.
Os apoiadores da relativização defendem que manter de forma irrestrita e absoluta da impenhorabilidade salarial, sem analisar o caso concreto e suas particularidades pode causar um grande e arriscado desequilíbrio nas relações jurídicas, favorecendo o devedor em detrimento do credor. Além do mais, poderia incentivar a criação de mecanismos para a ocultação de patrimônio por parte do devedor, dificultando a já conturbada efetivação das execuções judiciais.
Na outra ponta estão os críticos da relativização que reforça e acreditam na importância da impenhorabilidade salarial como garantia da subsistência do trabalhador e de sua família. Defendem que a penhora pode acarretar à precarização das condições de vida do trabalhador, comprometendo seu sustento básico e violando diretamente direitos fundamentais protegidos pela Constituição.
Fato é que o Poder Judiciário é fundamental na busca pelo equilíbrio entre as relações humanas, bem como a proteção do trabalhador e a efetividade das execuções judiciais. Cabe aos juízes e os tribunais analisar o caso concreto de forma individual, pois assim é possível levar em consideração as circunstâncias específicas e os princípios que regem o direito, como a dignidade da pessoa humana.
O Superior Tribunal de Justiça já foi acionado a se manifestar acerca de tal celeuma no EREsp nº 1874222[1] e se posicionou no sentido de que é possível a relativização da regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, desde que assegurada a dignidade da pessoa e de sua família.
O relator dos embargos de divergência, Ministro João Otávio de Noronha, entendeu que a supressão da palavra “absolutamente” do caput do artigo 833 abriu caminho para a relativização da impenhorabilidade e prosseguiu defendendo que a ponderação deve se apoiar à luz da dignidade da pessoa humana para assegurar tanto o credor quanto o devedor.
Seguindo o entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, faz-se necessário entender que a relativização da impenhorabilidade salarial não deve ser uma medida automática ou arbitrária, mas sim uma exceção justificada por circunstâncias específicas e devidamente fundamentada.
Pablo Perez
Morad Advocacia Empresarial