Recentemente o Brasil foi surpreendido com a triste notícia da morte do jornalista Ricardo Boechat, vítima de um acidente aéreo ocorrido durante o retorno de uma palestra por ele ministrada sobre a ética no trabalho, promovida pela indústria farmacêutica LIBBS e destinada aos respectivos colaboradores da área de vendas.
Mais surpreendente ainda foi a informação amplamente divulgada pelos meios de comunicação sobre a suspeita de que a empresa RQ Serviços Aéreos Especializados, proprietária do helicóptero que transportava o mencionado jornalista, não possuía licença para explorar a atividade de transporte de pessoas, mas, em vez disso, possuía apenas e tão somente licença para realizar determinados serviços aéreos, tais como aerofilmagem, aerofotografia , dentre outros.
Diante desse panorama desolador, surge a seguinte dúvida: de quem é a responsabilidade pela dor e pelos danos causados aos familiares das vítimas em decorrência de um acidente aéreo dessa monta? Mais especificamente, de quem é a responsabilidade no caso em questão? Da LIBBS, que promoveu o evento corporativo que ensejou o malsucedido transporte aéreo que vitimou o ilustre jornalista? Da Zum Brasil, encarregada de organizar e coordenar a execução do evento coorporativo da LIBBS, e que supostamente deixou de tomar as devidas cautelas por ocasião da seleção, escolha e intermediação da contratação do prestador de serviços de transporte aéreo? Da RQ Serviços Aéreos Especializados, que apesar de oferecer e realizar serviços de transporte aéreo de pessoas, não possuía autorização legal para tanto? Ou da própria ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), que apesar de ter o dever de fiscalizar e coibir a prestação clandestina de serviços de transportes aéreos, aparentemente nada fez para prevenir esse triste episódio?
Eis aí uma questão delicada, já que vários são os personagens envolvidos nesse triste episódio, cada qual com a sua parcela de responsabilidade.
Para uma melhor compreensão, necessário se faz delinear o panorama jurídico que envolve esse assunto. Assim, de acordo com a legislação pertinente, podemos dizer de uma forma bem simplista que o transporte de pessoas nada mais é do que um contrato em que alguém, mediante remuneração, se obriga a levar pessoas aos locais por elas indicados. Trata-se de um contrato de resultado, onde o transportador, além de assumir a obrigação de levar os passageiros até o destino contratado, tem também o dever de assegurar a integridade física e psíquica deles.
No Brasil, de um modo geral, o transporte aéreo de passageiros — e as questões envolvendo a reparação de danos decorrentes desse tipo de atividade — é tratado pelo Código Civil (lei nº 10.406/02) e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA / Lei nº 7.565/86), bem como por convenções e tratados internacionais devidamente internalizados no ordenamento jurídico brasileiro, tais como a Convenção de Varsóvia (Decreto nº 20.704/31). Inclui-se também nesse arcabouço jurídico o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), aplicável naquelas hipóteses em que houver relação de consumo entre as partes contratantes.
Nessa toada, se fosse possível sintetizar o trágico evento que vitimou o ilustre jornalista Boechat na figura de um iceberg, poderíamos dizer que na respectiva ponta, de forma bem visível e inquestionável, está a empresa RQ, contratada pela LIBBS para realizar o transporte aéreo que culminou com a morte de duas pessoas.
Por se tratar de uma atividade de resultado, a RQ o tinha dever de transportar o mencionado jornalista em segurança até o destino final contratado. Ao deixar de cumprir tal obrigação, esse prestador de serviços passou a se sujeitar à regra contida no artigo 734 do Código Civil, segundo a qual é atribuído ao transportador a responsabilidade pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens. Nesse mesmo sentido é o que dispõe o Código Brasileiro de Aeronáutica, segundo o qual a responsabilidade pelos danos ocorridos durante o contrato de transporte é do transportador. Assim, de acordo com a legislação civil e com o mencionado código aeronáutico (cf. CBA, art. 246 e 256), a RQ responde pelos danos decorrentes da morte de seus passageiros.
Não se sabe, ainda, com certeza, as causas desse acidente, mas, independentemente de ter havido dolo ou culpa da RQ, a mencionada empresa de transportes responde objetivamente pela reparação e indenização de todos os danos daí decorrentes, inclusive aqueles de ordem moral originados da dor experimentada pelos familiares do falecido jornalista. Por se tratar de matéria envolvendo transporte doméstico de pessoas, ou seja, transporte realizado dentro do território brasileiro, aplica-se também à espécie o Código de Defesa do Consumidor, o qual, alicerçado no conceito da responsabilidade objetiva, impõe ao transportador, independentemente da existência de culpa, a responsabilidade ilimitada quanto ao dever de reparar, sendo nula e ineficaz qualquer excludente ou limitação dessa responsabilidade (cf. CDC, art. 14). Nesse sentido, o próprio STJ já decidiu que, tratando-se de relação de consumo, prevalecem as disposições do Código de Defesa do Consumidor no que concerne às limitações previstas na Convenção de Varsóvia e no Código Brasileiro de Aeronáutica (cf. EREsp. 269.353/SP; REsp. 538.685/RO).
Ainda valendo-se da figura de um iceberg, poderíamos dizer que na linha d’água está a indústria farmacêutica LIBBS, que promoveu o evento em que foi ministrada a palestra do ilustre jornalista Boechat, com o intuito de solidificar os respectivos valores corporativos entre os seus colaboradores e, consequentemente, fortalecer a respectiva imagem perante o mercado. Desta forma, na condição de contratante dos serviços de transporte aéreo, a LIBBS também responde pela reparação dos danos relacionados ao mencionado jornalista, no período em que o helicóptero encontrava-se à sua disposição e sob a sua responsabilidade. Aliás, nesse sentido, o próprio STJ já decidiu em caso análogo que a empresa tomadora do frete (afretadora) deve reparar os danos causados a terceiros durante o período em que a aeronave encontrava-se sob sua responsabilidade (cf. REsp. 81316 RJ 1995/0063747).
Aliás, pouco importa, para efeito de responsabilização da LIBBS, se a empresa encarregada pela organização do evento, no caso a Zum Brasil, tomou ou deixou de tomar as cautelas devidas ao selecionar, ao indicar e ao intermediar a prestação de serviços de transportes aéreos de uma empresa de transporte aéreo com situação supostamente irregular e desprovida de autorização das autoridades competentes para transportar pessoas, já que a responsabilidade dela é, nesse caso, solidária e objetiva.
Retomando a figura metafórica do iceberg, também poderíamos dizer que abaixo da linha d’água encontram-se a Zum Brasil e a própria ANAC, já que as respectivas responsabilidades não são de fácil visualização.
A Zum Brasil, caso comprovado que ela deixou de tomar as devidas cautelas ao selecionar, ao indicar e ao intermediar a contratação de uma empresa de transporte aéreo para a LIBBS em situação aparentemente irregular, estará sujeita ao ressarcimento dos prejuízos experimentados pela mencionada empresa farmacêutica, em uma eventual ação regressiva. E isso porque a LIBBS, ao contratar a Zum Brasil especialmente para organizar uma importante convenção de vendas por ela promovida, inclusive no que concerne ao transporte do principal personagem desse evento, isto é o jornalista Boechat, esperava dela a diligência e as cautelas mínimas necessárias para a contratação de um prestador de serviços de transporte aéreo em situação regular e apto para tal atividade. Se a Zum Brasil assim não o fez, ou seja, se o serviço prestado à LIBBS foi defeituoso, tem ela a obrigação legal de reparar todos os daí decorrentes (cf. CC e CDC).
Já a ANAC, na condição de ente responsável pela regulação e fiscalização da aviação civil, ao deixar de fiscalizar adequadamente e de impedir eficazmente a prestação irregular de serviços de transporte aéreo, se omitiu de forma ilícita ou, no mínimo, se comportou abaixo daquilo que dela era esperado, de modo a contribuir, ainda que de forma indireta, para a ocorrência do acidente que vitimou o ilustre jornalista e o piloto da aeronave, podendo ser, também, em razão disso, responsabilizada solidariamente a ressarcir todas as pessoas que experimentaram danos em razão do mencionado evento lesivo.
No que concerne às vítimas desse iceberg ilustrativo, ou seja, todas as pessoas que, direta ou indiretamente, foram atingidas pelo desastre aéreo em questão, assiste-lhes o direito de serem indenizadas por suas perdas, não apenas de ordem material, isto é, pelos prejuízos financeiros que sofreram, mas, também, pelas perdas de ordem moral, decorrentes da dor e do sofrimento experimentados pela perda de entes queridos, independentemente de dolo ou culpa do prestador de serviços de transporte aéreo. Conforme salientado anteriormente, essas indenizações serão fixadas com base no Código de Defesa do Consumidor, sem qualquer sujeição às limitações previstas no Código Brasileiro de Aeronáutica e na Convenção de Varsóvia. A esse respeito, é importante esclarecer que os nossos tribunais, de um modo geral, têm reconhecido o direito ao ressarcimento de danos morais apenas aos parentes de primeiro grau, aos cônjuges e aos companheiros das vítimas.
De tudo o que foi dito, verifica-se em casos dessa natureza, de forma simples e clara, a necessidade cada vez mais premente de se apurar, com agilidade e precisão, a responsabilidade e a correspondente punição — de forma exemplar e na exata medida das respectivas responsabilidades — de todos os responsáveis, direta ou indiretamente, pela morte das pessoas envolvidas, não apenas nesse triste acidente aéreo, mas em todos eles, desde os prestadores de serviços até às autoridades competentes pelo licenciamento e fiscalização desse tipo de atividade, inclusive aqueles que, ao contratar esse tipo de serviço, descuidam-se ou intencionalmente abrem mão das devidas cautelas quanto à verificação da aptidão e da regularidade do prestador de serviço de transporte aéreo, com a mesquinha e inconsequente finalidade de obter algum tipo de economia ou vantagem financeira. E a razão disso é muito simples: de nada adianta um regramento minucioso e rigoroso se não há, em contrapartida, a correspondente fiscalização e o adequado controle, tampouco a correspondente punição exemplar de quem o descumpre!
Ricardo Bueno de Almeida
Advogado no Escritório Morad Advocacia Empresarial
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