Desde a época da Lei Seca, instituída pela 18ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, não se tinha notícia de algo tão repulsivo quanto a adulteração ou mesmo a falsificação de bebidas alcoólicas mediante o emprego de substâncias nocivas à saúde.
Lá, nos EUA, na década de 1920 e início da década de 1930, foi instituída pela mencionada emenda constitucional a chamada Prohibition, cuja finalidade era proibir a produção, a venda e o transporte de bebidas alcoólicas em território norte-americano.
Essa proibição, na realidade, foi o resultado de um complexo contexto social, religioso e político. Grupos religiosos protestantes, grupos políticos e organizações de mulheres pregavam que o consumo de álcool era a causa de todos os males sociais — tais como a violência doméstica, a pobreza, as doenças, a imoralidade, a criminalidade e até mesmo a indigência espiritual. Para esses grupos, a proibição do álcool significava a purificação da sociedade e, consequentemente, a melhoria da vida das famílias norte-americanas. Enxergavam, na eliminação do álcool, um sólido pilar para uma sociedade mais “pura” e orientada por valores cristãos.
Mas não foi só isso. Médicos dessa época alegavam que o álcool era responsável por altos índices de doenças e acidentes, inclusive no trabalho. Aliás, em um período em que a industrialização avançava a passos largos, difundiu-se o entendimento de que trabalhadores sóbrios seriam mais produtivos e menos propensos a faltar. Somava-se, ainda, o contexto pós-Primeira Guerra Mundial, no qual se acreditava que os grãos utilizados na fabricação de cerveja e destilados deveriam ser destinados prioritariamente à alimentação.
A combinação de todos esses fatores — sociais, econômicos, políticos, de saúde pública e também ligados ao contexto de pós-guerra — acabou propiciando a criação da mencionada 18ª Emenda à Constituição dos EUA.
Contudo, pelo andar da carruagem, a “emenda saiu pior que o soneto”. Isso porque abriu-se espaço para um enorme mercado clandestino de fabricação e distribuição de bebidas, fomentando o surgimento de uma infinidade de destilarias ilegais e bares clandestinos — conhecidos, respectivamente, como moonshiners e speakeasies —, além de propiciar o fortalecimento de máfias organizadas, como a do famigerado Al Capone, que lucravam com o contrabando e o comércio ilegal de bebidas alcoólicas.
Por se tratar de uma atividade ilegal, empreendida na clandestinidade, não havia fiscalização. A preocupação dos fabricantes resumia-se a agir à margem da lei e a lucrar desenfreadamente, a qualquer custo.
Nessa toada, a fabricação e a adulteração de bebidas alcoólicas durante a vigência da mencionada Lei Seca eram frequentes, sobretudo mediante o emprego do álcool metílico, conhecido como metanol, já que se tratava de uma substância barata e de fácil obtenção.
O problema é que o metanol é extremamente tóxico. Pequenas quantidades podem causar cegueira, danos neurológicos gravíssimos ou até mesmo a morte de quem o ingere.
Enfim, desse triste capítulo da história mundial é possível perceber, sem grande esforço, que a política de proibição total de bebidas alcoólicas, além de não reduzir o consumo, gerou mais riscos à saúde e mais mortes do que se o governo dos EUA tivesse simplesmente regulado e fiscalizado a produção legal dessas bebidas.
No Brasil nunca houve algo equivalente à Lei Seca norte-americana. Aqui, jamais se instituiu uma proibição constitucional ampla e absoluta da fabricação, venda ou consumo de bebidas alcoólicas. Ao contrário, a produção e a venda de bebidas alcoólicas sempre foram permitidas e até incentivadas economicamente, mesmo porque o álcool sempre foi cultural e socialmente aceito no território brasileiro.
O que existe, de fato, são regras de restrição aplicáveis a determinados contextos, como: a proibição de venda a menores de 18 anos (ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente); a proibição de conduzir veículos automotores sob influência de álcool (CTB – Código de Trânsito Brasileiro); limitações à publicidade em rádio e TV em determinados horários; entre outras.
Apesar disso, recentemente ocorreram, na capital paulista, casos estarrecedores de adulteração de bebidas alcoólicas com metanol. Foram confirmadas mortes por intoxicação, além de vários casos ainda sob investigação. Diante da gravidade, foi instaurado um gabinete de crise no governo do Estado de São Paulo, e emitidos protocolos técnicos e orientações médicas relativos à vigilância, à urgência no atendimento, à notificação obrigatória e à preservação de provas, entre outras medidas.
E a pergunta de um milhão de dólares que surge desse cenário desolador é: por que alguém — em um pais tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, onde não há, de forma absoluta, restrição ao álcool — pratica um ato desprezível como a adulterar bebidas alcoólicas com substâncias extremamente nocivas à saúde humana? Por que alguém, em sã consciência, se arriscaria a colocar no mercado um produto letal como o metanol, em vez de produzir ou revender bebidas de forma lícita?
A resposta está em um conjunto de motivações, que nascem do desrespeito e do desprezo pelo semelhante, avançam pelo espectro econômico e cultural e repousam no campo das motivações criminosas.
Sob o aspecto econômico, não é difícil vislumbrar: o metanol é mais barato que o etanol — álcool etílico utilizado na fabricação de bebidas —, cujo custo, em razão dos padrões de qualidade exigidos, é muito mais elevado. Assim, quando se mistura o metanol, que é dificilmente identificado, em bebidas alcoólicas como vodka, gin ou whisky, o falsificador consegue, de forma maliciosa e criminosa, multiplicar o volume e, consequentemente, os lucros.
Não se pode descartar, ainda, a participação de organizações criminosas nesse tipo de evento delituoso, aproveitando-se de um mercado paralelo ávido por bebidas baratas capazes de gerar significativa margem de lucro.
Assim, diante de um cenário em que a fiscalização é deficiente e o risco de ser pego é baixo em comparação aos lucros obtidos, é forçoso concluir que, para o criminoso, “o crime compensa”.
Impõe-se ressaltar que aquele que adultera bebidas alcoólicas, energéticas ou não alcoólicas, colocando substâncias que prejudiquem a saúde — como o metanol, solventes ou mesmo excesso de produtos químicos —, pratica crime de adulteração tipificado no artigo 272, § 1º, do Código Penal, cuja pena varia de 4 a 8 anos de reclusão, além de multa.
O § 1º-A desse artigo amplia a responsabilização criminal, punindo de igual modo não apenas quem adultera a bebida, mas também aquele que, ciente de que o álcool adquirido é falsificado, ainda assim o comercializa, expõe à venda, armazena, importa ou distribui ou entrega ao consumo.
A pena, nesse caso, varia de acordo com a culpabilidade do infrator. Dessa forma, se o crime for culposo, a pena será de detenção de 1 a 2 anos, além de multa.
Por se tratar de um crime contra a saúde pública, merece — diante de sua relevância — ser tratado com maior esmero e cuidado por todos os órgãos envolvidos e responsáveis pela regulação do setor de bebidas alcoólicas: Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e Secretaria da Receita Federal (produção, registro e tributação), ANVISA (saúde pública e segurança do consumo), Polícias Federal, Civil e Militar (repressão a fraudes e crimes), Estados e Municípios (fiscalização do comércio, alvarás e tributos). Isso porque a ocorrência de crimes dessa natureza no Brasil decorre de uma economia criminosa, baseada na ganância, na clandestinidade, na falta de fiscalização eficiente e na crença de impunidade.
José Ricardo Armentano — advogado na MORAD ADVOCACIA EMPRESARIAL