No rol das condutas rasas e desprezíveis, tanto o racismo quanto a injúria de cunho racial certamente têm nele um lugar de destaque!
Confesso que na minha infância cheguei a nutrir sentimentos pouco edificantes nesse sentido, os quais, aliás, eu não me orgulho nem um pouco. Coisa de criança. Mas, ainda assim, reprovável, mesmo porque a formação do caráter de um homem já começa desde cedo, no núcleo familiar e a partir das respectivas experiências pessoais. Como bem dizia a minha tia Elvira: é de pequeno que se torce o pepino!
Um episódio ocorrido na minha pré-adolescência foi marcante para semear no âmago do meu ser um imperdoável ressentimento em relação à raça negra.
Os meus pais, na década de 60, moravam em um edifício situado nas imediações da Avenida Paulista, em São Paulo. Era uma época em que essa a região abrigava imponentes casarões, que apesar de belos e singularidades, estavam fadados à demolição. Aliás, vários casarões existentes nas ruas adjacentes haviam sido transitoriamente transformados em cortiços, enquanto aguardavam, no corredor da morte, a execução de suas penas capitais, já que mais tarde seriam demolidos para dar lugar a modernos edifícios residenciais. E neles moravam todo o tipo de gente, das mais variadas etnias, condições sociais e profissões.
Juntamente com a garotada que morava nesses cortiços, eu costumava jogar futebol atrás da Igreja Imaculada Conceição, localizada na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio — onde havia uma quadra e um campo de futebol — ou nos terrenos da região, cujos casarões já haviam sido demolidos. Ao final desses jogos, fazíamos um crowdfunding, digo, uma vaquinha, para comprar Tubaína nos empórios das redondezas. Era tudo muito divertido.
O meu drama começou quando um jogador do nosso time — que era formado por garotos do prédio onde eu morava — combinou um jogo contra um time de garotos da região da Bela Vista, que costumava jogar em um campo de terra batida situado nas imediações do Bixiga. Esse time adversário era composto por meninos negros, cujas condições sociais não eram nem um pouco privilegiadas. Mal a bola começou a rolar, percebemos que as coisas não seriam fáceis para nós. O nosso time até que jogava razoavelmente bem, desde que a disputa fosse leal. Mas não foi o que aconteceu. Os meninos do time adversário, incentivados por uma torcida formada por moradores desocupados da região, passaram a disputar as jogadas de forma desleal e violenta, com a nítida intenção de nos machucar, bem como a nos provocar com ofensas, por conta da nossa condição social um pouco mais favorecida que a deles. Em um determinado lance da partida, um jogador desse time adversário, apelidado de “Feijão”, errou propositadamente o tempo da bola e chutou violentamente a canela do nosso amigo Dudu, que apesar de franzino, era o jogador mais habilidoso do time. Enquanto ele, caído, chorava de dor, os meninos do time adversário riam e tripudiavam em volta dele. Enfim, foi um verdadeiro pesadelo. Perdemos o jogo por vários gols de diferença.
Em relação a esse episódio, a derrota em si não foi a parte mais dolorida, mas, sim, a humilhação e a sensação de impotência decorrente da violência e das provocações estimuladas por um bando mal-ajambrado de adultos, que muito provavelmente encontraram nessa partida de futebol, disputada entre crianças de classes sociais diferentes, uma oportunidade para descontar a falta de perspectiva e os infortúnios decorrentes da própria miserabilidade.
E é aí que está a parte mais nociva e perigosa dessa história. Essa partida de futebol despertou em nós um ódio sem precedentes. Passamos — uns mais, outros menos — a associar preconceituosamente pessoas negras com o que há de mais odioso na espécie humana. O garoto que havia combinado essa trágica partida foi aquele que mais ficou incomodado com o ocorrido. E foi justamente ele que combinou, tempos depois, uma revanche em um terreno situado nas proximidades do prédio onde morávamos. Só que dessa vez, no lugar do franzino Dudu, o time seria reforçado por um menino mais velho: o filho do alfaiate que morava lá no cortiço e que esporadicamente jogava bola conosco. Ele, ciente do ocorrido, tomou as nossas dores para si. Nessa toada, o filho do alfaiate, assim que foi iniciada a partida, nem se preocupou em acertar a bola. Em vez disso, desferiu um violento chute por trás do tal do Feijão, que, no chão, passou a se contorcer de dor. O jogo foi tão violento, que sequer chegou a terminar. Os jogadores do time do Feijão, diante do placar desfavorável e reclamando das condições desleais da disputa, resolveram desistir da partida. Pois é! De humilhados… passamos a humilhar, de forma implacável e cruel, os jogadores do time adversário. Só não houve uma briga porque estávamos em superioridade numérica, já que vários meninos mais velhos e mais fortes do cortiço, que também costumavam também jogar bola conosco, estavam ali para nos apoiar. Essa história só não prosseguiu tragicamente porque o pessoal do time adversário acabou se mudando pouco tempo depois, em razão do inicio de uma construção na região em que moravam.
As sementes do ódio e do preconceito, contudo, já estavam plantadas em nossos corações. Felizmente o destino foi generoso conosco. E isso porque no cortiço passou a morar um menino negro chamado Tadeu. Por ser extremamente simpático e divertido, enturmou-se logo conosco. Embora magro como um palito, era rápido e jogava muito bem. Aliás, ele passou a jogar no nosso time, justamente no lugar do Dudu, que depois daquele triste episódio nunca mais quis jogar conosco. A simplicidade e a alegria do Tadeu sufocaram completamente o ódio e o ressentimento que existia entre nós. Além de ter se tornado um querido amigo, ele se tornou, também, um jogador imprescindível para o nosso time, já que era o principal responsável pelas nossas vitórias! O meu pai sempre dizia que, de todos amigos que andavam comigo, ele era o mais educado e com os valores pessoais mais apurados. Apesar da vida modesta que levava no cortiço e das adversidades dela decorrentes, jamais se queixava. Estava sempre com um sorriso estampado no rosto e se esforçava, por meio do estudo, para ter uma vida melhor.
Certa vez, durante um jogo disputado contra um time de um abastado condomínio, fizeram uma piada maldosa com o nosso amigo Tadeu. Foi uma piada rasa, uma provocação maldosa, que doeu no fundo das nossas almas. Fomos todos tirar satisfações e por pouco não houve uma briga generalizada. Se havia algum tipo de ranço em relação ao preconceito racial, certamente isso morreu aí. Percebemos o quanto é dolorido ver alguém querido ser maltratado, diminuído e ofendido de forma ignóbil. Mais tarde, ao conversar com o Tadeu a respeito disso, fui surpreendido pela respectiva postura madura: ele tinha pleno conhecimento do próprio valor pessoal, razão pela qual, na concepção dele, não seria um punhado de piadas preconceituosas, vindo de gente desprezível, que o faria se sentir diminuído ou desvalorizado.
O tempo passou e esse cortiço, por ocasião de um período denominado “milagre econômico brasileiro”, acabou sendo demolido para dar lugar a um belo edifício residencial. Nunca mais vi o meu amigo Tadeu, tampouco o filho do alfaiate e os demais garotos das redondezas que, como eu, jogavam bola nos terrenos onde, outrora, existiam casarões.
Descobri, assim, muito cedo, a perversidade que o preconceito racial encerra em si, bem como as graves e nocivas consequências das condutas preconceituosas, especialmente aquelas de cunho racial.
O preconceito racial pode ser considerado como um juízo depreciativo a respeito de um determinado grupo racial, baseado em ideias e generalizações preconcebidas. Assim, considerar o negro como um ser de má índole, violento e inferior, é um exemplo típico desse tipo de preconceito.
Por conta da extrema gravidade que esse tipo de questão envolve, houve por bem o legislador brasileiro dar tratamento rigoroso a essa matéria, criminalizando-a.
Inicialmente, a legislação pertinente tratava apenas dos crimes resultantes de preconceito de raça e de cor (Lei nº 7.716/89). Contudo, ao longo do tempo, o legislador houve por bem ampliar esse tratamento, de modo a abranger, também, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de etnia, religião ou procedência nacional (cf. art.20, cuja nova redação foi dada pela Lei nº 9.459/97). Assim, responderá pelo crime de racismo, por exemplo, o empresário que negar a promoção funcional e adotar politica salarial diferenciada em relação aos empregados negros. De igual modo, responderá pelo crime de preconceito e discriminação religiosa, por exemplo, o dono de restaurante que impedir a entrada de evangélicos em seu estabelecimento ou, então, responderá pelo crime de preconceito e discriminação em razão da procedência nacional, por exemplo, o comerciante que se recusar a vender mercadorias para venezuelanos.
De uma forma bem simplória, é possível afirmar, que a legislação trata desse assunto sob dois enfoques: crimes decorrentes de discriminação ou preconceito racial e crimes decorrentes de injúria preconceituosa.
Os crimes decorrentes de discriminação e preconceito racial são tratados pela Lei nº 7.716/89 (cf. art. 20), cuja finalidade primordial é tutelar a igualdade e o respeito entre as pessoas. Oportuno se faz ressaltar que a caracterização desse tipo de crime não se dá no plano individual, mas, sim, no plano coletivo. Trata-se, por força da nossa Constituição Federal, de crime imprescritível e inafiançável (cf. artigo 5º, XLII, CF).
Já a injúria, de um modo geral, está tipificada como crime no artigo 140 do Código Penal e consiste na prática de ato destinado ofender a dignidade e o decoro. Será considerada preconceituosa se o respectivo ato contiver elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem (cf. art. 140, parágrafo 3º, CP), bem como elementos referentes à condição de pessoa idosa ou a algum tipo de deficiência (cf. Lei nº 9.459/97). O que a lei penal almeja, nesse caso, é tutelar, no plano individual, a honra subjetiva do cidadão.
Ao contrário do que ocorre com os crimes envolvendo discriminação e preconceito racial, a ação penal decorrente do crime de injuria racial está condicionada à correspondente representação por parte do ofendido. Trata-se, por força da legislação pertinente, de um crime prescritível e afiançável.
Para a caracterização desses crimes, ou seja, para que sejam configurados os crimes de discriminação e preconceito racial, bem como o crime de injuria racial, impõe-se a existência de dolo, ou seja, é necessário que haja vontade deliberada para a prática dessas condutas ofensivas de cunho racial.
Particularmente, creio que a solução para esse tipo de problema não se limita apenas a um rigoroso tratamento legislativo. Isso, sem dúvida alguma, é importante para se coibir a prática de crimes raciais. Contudo, não é suficiente! Por mais rigorosas e abrangentes que possam ser as leis, elas, por si só, não têm o condão de solucionar e erradicar esse grave problema. Para tanto, necessário se faz, desde a tenra idade e no seio familiar, o ensino daquele conjunto de valores morais — assim considerados como os conceitos, juízos e pensamentos universais sobre o que é “certo” e “errado” — indispensáveis para a formação de um caráter reto e íntegro, onde a tolerância e o respeito às diferenças, inclusive aquelas de cunho religioso, étnico-racial e cultural, não permitem o aviltamento e o vilipêndio do próprio semelhante, qualquer que seja a raça, a religião, a etnia, ou a procedência!
José Ricardo Armentano
Advogado no Escritório Morad Advocacia Empresarial
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