O encontro fortuito de provas é uma questão relevante no direito processual penal, especialmente quando se discute a validade de provas obtidas de forma acidental durante investigações destinadas a apurar crimes diferentes daqueles inicialmente investigados. Também conhecida como “serendipidade”, ocorre quando, durante uma diligência legítima e previamente autorizada para investigar determinado delito, surgem indícios ou provas de outros crimes não relacionados ao objeto original da investigação.
Refere-se à situação em que, no curso de uma investigação ou diligência realizada de maneira legítima, como uma busca e apreensão ou interceptação telefônica, as autoridades encontram provas que não dizem respeito ao objeto da investigação original, mas que revelam a prática de outros delitos. Essa prova, embora não tenha sido buscada especificamente, pode ser relevante para a persecução penal de crimes distintos do investigado.
Um exemplo disso é o julgamento do RHC 81.964/RS, relatado pelo Ministro Antônio Saldanha Palheiro, onde discutia-se a nulidade de uma prova obtida de maneira acidental por meio de interceptação telefônica autorizada para investigar um crime anterior. No entanto, foi reconhecida a legitimidade da investigação que, a partir de uma decisão judicial voltada à apuração de crimes relacionados à organização criminosa e tráfico de drogas, obteve indícios de novos delitos.
Segundo o relator Antônio Saldanha Palheiro:
“Ora, é da orientação desta Corte Superior que a descoberta, em interceptação telefônica judicialmente autorizada, do envolvimento de pessoas diferentes daquelas inicialmente investigadas – o denominado encontro fortuito de provas (serendipidade) – é fato legítimo, não gerando irregularidade do inquérito policial, tampouco ilegalidade na ação penal. (…)
Embora, em um primeiro momento, não se tenha dirigido a investigação ao recorrente, certo é que seu envolvimento nos delitos apurados em relação a corréus foi descoberto em encontro fortuito de provas, ocorrido em procedimento efetuado em observância à disciplina legal.
Por conseguinte, não há falar em nulidade, conforme a orientação deste Tribunal Superior.”
Entretanto, não se pode concluir que todas as provas encontradas de forma casual, mesmo sem abuso de poder, poderão ser aproveitadas no processo. Na verdade, mesmo que a autoridade tenha atuado dentro dos limites legais, ainda pode ocorrer a extrapolação do objetivo da medida decretada, exigindo um controle rigoroso sobre a atuação policial.
A doutrina faz uma distinção entre as situações de encontro fortuito de provas, classificando-as em serendipidade de primeiro e segundo grau. No primeiro caso, trata-se da descoberta de provas que possuem conexão ou continuidade com o fato principal sob investigação. Já no segundo grau, a serendipidade ocorre quando as provas encontradas não têm qualquer relação com o crime que inicialmente se pretendia investigar.
A conexão e a continência que justificam o reconhecimento da serendipidade de primeiro grau são aquelas descritas nos artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal, que resultam na alteração da competência para julgar o crime. Nessas circunstâncias, a prova de um fato impacta diretamente a prova do outro, seja devido à relação de tempo ou lugar, à dependência entre os crimes, ou até mesmo pela participação conjunta de indivíduos no delito.
Por outro lado, os fatos descobertos através da serendipidade de segundo grau não possuem qualquer vínculo com o crime originalmente investigado, o que impede a utilização dessas provas. Quando se trata de uma descoberta que efetivamente não tem conexão com o crime inicial, especialmente considerando as amplas possibilidades de conexão previstas na lei, o uso dessas provas é proibido, pois há um risco significativo de desvio no curso adequado da medida investigativa.
E nesse sentido, temos como exemplar o julgamento do RMS 25.174/RJ, sob a relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, no qual foi identificada a abusividade na decisão que autorizou a medida extrema. Diante disso, foi concedida a segurança solicitada pela defesa, resultando na exclusão das provas que foram obtidas sem o devido respeito ao processo legal.
Conforme a relatora Maria Thereza de Assis Moura:
“Neste ponto, cumpre anotar que a quebra de sigilo bancário e fiscal é medida violenta, que não pode servir ao perigoso intuito de devassa injustificada, sob pena de tornar vazia a garantia constitucional da privacidade do cidadão, somente afastada diante da demonstração de motivos suficientemente hábeis e no mínimo de indícios concretos da conduta supostamente delituosa.”
Percebe-se, portanto, que a doutrina predominante estabelece dois limites para a utilização de provas fortuitas: a ausência de desvio abusivo do curso natural da investigação e a existência de vínculo entre o objeto investigado e o crime descoberto de forma acidental.
A admissibilidade dessas provas, desde que observados os parâmetros legais, pode ser um instrumento valioso para a elucidação de crimes e a efetivação da justiça. No entanto, é imprescindível que as autoridades investigativas atuem com responsabilidade e respeito ao devido processo legal, a fim de garantir que os direitos do investigado não sejam violados, preservando assim a integridade do sistema jurídico.
Morad Advocacia Empresarial