Quem nunca ouviu falar de uma pessoa que, premida pela necessidade, assume obrigação desproporcional e excessivamente onerosa para remediar uma situação desesperadora?
Imagine, por exemplo, uma situação em que uma mãe amorosa recebe, durante um final de semana, um vil telefonema de um sequestrador, dando conta que o seu querido filho Nikolai foi sequestrado e exigindo, em razão disso, um modesto resgate de R$ 10.000, sob a ameaça dele ser reduzido a uma indigesta bujenina fatiada, caso esse valor não seja pago imediatamente. Imagine, ainda, que essa mãe, sem recursos para suportar o pagamento desse resgate e sem ter a quem recorrer, concorde em vender o seu valioso e estimado ovo Fabergé — proveniente da mais nobre cepa de czares russos do século XVIII, que ela havia ganho dos seus estimados sogros por ocasião de seu casamento com o seu já falecido marido Mikhail — para uma prestativa e oportunista vizinha, pela bagatela de US$ 2,500, cujas verdes cédulas (de valor aproximado ao montante exigido a titulo de resgate) estavam por ela sendo cuidadosamente acondicionadas em uma caixa de sapatos, para custear uma viagem à Disneylândia!
Esse tipo de situação, que a legislação pertinente denomina estado de perigo, não é tão incomum assim!
São frequentes, por exemplo, casos em que pessoas correndo risco de vida, ou mesmo acompanhantes de pacientes em situação emergencial, assumem obrigações extremamente onerosas perante estabelecimentos médico-hospitalares, no afã de obter tratamento médico de urgência.
Por esse motivo, o legislador resolveu dar tratamento adequado a essa matéria por meio do Código Civil. Segundo esse diploma legal, configura-se o estado de perigo quando alguém, premido pela necessidade de salvar a si próprio ou pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa (cf. CC, art. 156).
O estado de perigo é considerado como uma das causas de anulação do negócio jurídico. Vale dizer que todo e qualquer negócio jurídico em que uma das partes, quando da sua realização, estiver em estado de perigo, será, em virtude disso, passível de ser anulado!
Objetivamente falando, para a caracterização do estado de perigo não basta apenas a existência de uma mera suposição ou mesmo o temor de um dano qualquer, seja a quem for. Para tanto, impõe-se a existência da possibilidade de grave dano à própria pessoa ou à pessoa de sua família.
Aliás, a esse respeito, oportuno se faz ressaltar que não são apenas a parte prejudicada e os respectivos familiares as únicas pessoas passíveis de envolvimento no estado de perigo. Amigos, acompanhantes ou até mesmo estranhos poderão estar submetidos a esse tipo de situação. Caberá ao juiz, diante do caso concreto, analisar as respectivas peculiaridades e decidir se nele está caracterizado — ou não — o estado de perigo (cf. CC, art. 156, parágrafo único).
A 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de SP (TJ-SP), ao analisar caso análogo, entendeu que a mera acompanhante de um paciente — cujas condições de saúde, na oportunidade, eram precárias — estava em estado de perigo quando assinou um termo de responsabilidade perante o estabelecimento hospitalar, para a viabilização da respectiva internação em situação emergencial. Para essa câmara, ante ao estado de perigo existente, restou bem configurado o vício de consentimento da acompanhante no caso em questão (cf. TJ-SP; Apelação 0021095-37.1997.8.26.0602; Rel. Des. Daise Jacot; j. 10/11/15).
Mas não é só isso! Impõe-se, também, para a configuração do estado de perigo, que o dano seja atual ou iminente. No exemplo da mãe amorosa que recebe o telefonema de um sequestrador exigindo o pagamento de resgate, o dano é atual, já que o querido filho está sequestrado e será fatiado em tirinhas caso o respectivo pagamento não seja realizado imediatamente (dano atual). O dano seria considerado iminente se o sequestrador, em um ato de benevolência típica desse tipo de criminoso, tivesse concedido a essa desesperada mãe um generoso prazo de 48 horas para a realização desse pagamento (dano iminente).
Para a configuração do estado de perigo, necessário se faz, ainda, que a onerosidade da obrigação assumida seja deveras expressiva, tal como no exemplo da mãe amorosa que, para salvar o filho, vende um valioso ovo Fabergé per un pugno di dollari (US$ 2,500), ou seja, por um valor ínfimo capaz de fazer corar de vergonha até mesmo o célebre pistoleiro sem nome do icônico filme homônimo dirigido pelo não menos célebre diretor Sérgio Leone.
Mas não é só isso! Além desses elementos de ordem objetiva, também devem estar presentes, para a caracterização do estado de perigo, elementos de ordem subjetiva.
Mais especificamente, a parte premida pela situação adversa deve ter a crença de que realmente está em perigo. Em outras palavras, se ela não tiver motivos para acreditar que está, de fato, correndo perigo de experimentar um grave dano irreparável, o estado de perigo não será passível de caracterização. Ilustrativamente falando, se o filho da mencionada amorosa mãe fosse o “meigo” John — o Wick ou Rambo, tanto faz —, seria muito difícil convencer um juiz que ela acreditava, de fato, que o seu rebento corria algum tipo de risco. Nesse caso, seria infinitamente mais fácil demonstrar que o sequestrador era, na realidade, quem se encontrava em uma situação de perigo, e não o contrário.
Além disso, para a caracterização do estado de perigo, a outra parte deve ter conhecimento da situação perigosa em que se encontra a parte prejudicada. No exemplo ilustrativo, a prestativa vizinha tinha pleno conhecimento do sequestro, do resgate exigido pelo sequestrador e das consequências para o filho sequestrado caso o resgate não fosse pago. Tanto é assim, que ela, rápida e providencialmente, concordou em adquirir um valioso artefato por uma verdadeira bagatela. É importante ressaltar que não se exige, para a caracterização do estado de perigo, que a outra parte — a vizinha, no caso do exemplo — tenha a intenção de tirar vantagem da parte premida pela necessidade. Exige-se apenas e tão somente que ela tenha conhecimento da situação.
Assim, presentes, de modo concomitante, todos esses fatores, tanto objetivos quanto subjetivos, caracterizar-se-á o estado de perigo, de modo que qualquer negócio jurídico realizado nessas condições será considerado inválido e, consequentemente, anulável, com o retorno das partes ao respectivo status anterior (cf. CC, art. 182).
A esse respeito, muito se discute se os negócios jurídicos realizados em estado de perigo são passíveis de revisão. Mais especificamente, discute-se a possibilidade de um negócio realizado nesse estado ser revisto e, consequentemente, sanado quanto à respectiva onerosidade excessiva.
A maioria dos doutrinadores entendem que o respectivo negócio, diante da existência de vício na vontade da parte prejudicada — decorrente do estado de perigo —, deve ser anulado. No exemplo mencionado a título ilustrativo, a venda do ovo Farbegé, se fosse submetida ao crivo do Judiciário, seria considerada inválida e o respectivo negócio anulado. A prestativa e providencial vizinha, consequentemente, teria de devolver o bem em questão à vendedora, e esta, por sua vez, teria de restituir os dólares estadunidenses anteriormente recebidos em pagamento, com o consequente retorno de ambas as partes ao estado em que se encontravam anteriormente.
Vamos supor, por exemplo, que um médico, ciente do desespero e da situação agonizante de um enfermo, se aproveita dessa situação e exige contratualmente, para trata-lo em caráter emergencial, uma pequena fortuna. Evidencia-se, nesse exemplo, a flagrante má-fé deste profissional da medicina, que se aproveita do temor e do desespero de um paciente à beira da morte para ajustar com ele relação obrigacional desproporcional e excessivamente onerosa. Nessas circunstâncias o negócio seria anulado.
Mas como ficaria, nesse caso, a situação do prestador de serviços médicos, vez que, em última análise, ele realizou os serviços pelos quais foi contratado? Ele ficaria a ver navios? E a resposta depende das respectivas peculiaridades.
Uma parte expressiva de doutrinadores estudiosos do Direito entente que em casos dessa natureza, diante da existência de má-fé, a solução deve ser rigorosa: anulação pura e simples do negócio!
Já outros doutrinadores entendem que a melhor solução seria a revisão do negócio jurídico, com a consequente redução e adequação, de forma razoável, dos valores envolvidos. Para esses doutrinadores, a mera anulação do negócio também ensejaria um resultado injusto. No caso de prestação de serviços médicos em que não há má-fé, tampouco ânimo de tirar vantagem de uma situação de extrema necessidade, por exemplo, além dos prestadores de serviços médicos não terem sido os causadores da situação que ensejou o estado de perigo, há, de fato, a efetiva prestação do serviço médico. Diante disso, esses doutrinadores entendem que a melhor solução seria a revisão do respectivo negócio, de modo a conservá-lo, valendo-se, para tanto, da redução do excesso existente na relação obrigacional ajustada entre as partes.
A 20ª Câmara de Direito privado do TJ-SP, ao analisar recentemente caso envolvendo uma ação de cobrança de serviços hospitalares fundada em termo de responsabilidade, reconheceu a improcedência da respectiva cobrança pelo estabelecimento médico-hospitalar. A parte prejudicada, no caso em questão, havia sido “alertada” por esse estabelecimento que se não assinasse um termo de responsabilidade, assumindo a obrigação de pagar por mais serviços médicos, exorbitantes e onerosos, “estaria colocando em potencial risco de morte” o respectivo paciente. A conduta desse estabelecimento médico-hospitalar, segundo essa câmara julgadora, foi abusiva, de modo a configurar, na espécie, estado de perigo. Consequentemente, o mencionado termo de responsabilidade foi considerado inválido e toda a cobrança nele baseada foi considerada improcedente (cf. TJ-SP; Apelação 1015465-23.2014.8.26.0008; Rel. Des. Luis Carlos de Barros; j. 05/08/19).
Vamos imaginar, ainda, que a prestativa vizinha do exemplo tenha feito uma “omelete” do tal ovo Fabergé ou, então, tenha dado um fim nele. O que aconteceria se isso, de fato, viesse a ocorrer? Bem, nesse caso aplica-se a regra contida na parte final do mencionado artigo 182 do Código Civil, ou seja, não sendo possível a restituição das partes ao estado em que se encontravam, deverá a parte prejudicada ser indenizada em valor equivalente.
Oportuno se faz ressaltar que a parte prejudicada em decorrência do estado de perigo terá o prazo de quatro anos para pleitear a anulação do negócio jurídico, contado da data da respectiva realização, sob pena de decadência desse direito (cf. CC, art. 178, II).
Depreende-se, assim, que o estado de perigo nada mais é do que um defeito do negócio jurídico e, como tal, enseja a respectiva anulabilidade quando caracterizado, com o consequente retorno das partes ao estado em que se encontravam anteriormente.
José Ricardo de Almeida
Advogado no Escritório Morad Advocacia Empresarial
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