Eis aí um assunto ainda muito atual, delicado e preocupante: o tabagismo. Segundo o Observatório de Saúde Pública (OSP)1, trata-se de uma doença crônica causada pela dependência da nicotina presente nos produtos à base de tabaco.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS)2, o tabagismo é uma das maiores ameaças à saúde pública já enfrentadas pela humanidade, sendo responsável, anualmente, por mais de sete milhões de mortes. Na visão dessa entidade, é uma pródiga fonte de sofrimento a longo prazo, por estar umbilicalmente ligada a uma variada gama de doenças, como o câncer de pulmão e o acidente vascular cerebral (AVC), entre outras. Para agravar ainda mais esse cenário, além de não existir nível seguro de exposição ao tabaco, até mesmo o fumante passivo está sujeito aos mesmos riscos que o inveterado tabagista.
Houve uma época em que o tabaco foi considerado panaceia para todos os males, chegando a ser anunciado até como cura da peste bubônica. Também já houve tempo em que o consumo do tabaco conferia um ar de autoridade, de intelectualidade ou até mesmo de rebeldia a quem o utilizava. Personagens marcantes da literatura, como o detetive Sherlock Holmes e seu indefectível cachimbo Calabash, criado pelo célebre Arthur Conan Doyle, ou personalidades da vida real, como o controvertido guerrilheiro Che Guevara, exemplificam esse imaginário. Aliás, a imagem desse revolucionário degustando um imponente habano é uma prova cabal disso.
Fumar, em um passado não tão distante, também era considerado algo glamouroso. Basta lembrar os atores hollywoodianos das décadas de 1950 e 1960. A personagem Holly, eternizada pela lindíssima Audrey Hepburn no icônico Bonequinha de Luxo, segurando charmosamente uma longa piteira, sintetiza o glamour associado ao ato de fumar. Também houve uma época em que o consumo do tabaco era intensamente estimulado por propagandas que o vendiam como sinônimo de superioridade, sucesso ou esperteza. Quem não se recorda das campanhas dos cigarros Hollywood, na década de 1970, repletas de ação e de gente bonita e bem-sucedida? Ou do viril cowboy Marlboro Man, das propagandas da Philip Morris? Da veloz McLaren vermelha e branca pilotada pela lenda do automobilismo Ayrton Senna, nos anos 1990? Ou ainda da polêmica propaganda dos cigarros Vila Rica, estrelada por Gérson, o “canhotinha de ouro” da Copa de 70, que inspirou a famosa “Lei de Gérson”?
Pois é! Muito tabaco foi queimado e muita fumaça foi inalada até que, a partir do início da década de 1960, começaram a surgir nos EUA estudos científicos criteriosos sobre os malefícios do tabaco. Constatou-se, então, que o tabagismo estava diretamente relacionado ao surgimento de diversas enfermidades, como o câncer de pulmão. A partir daí, várias medidas foram sendo implementadas ao redor do mundo, não para proibir, mas para restringir e desestimular o consumo.
No Brasil, não foi diferente. Não existe propriamente uma legislação destinada a proibir a produção, a comercialização ou a venda de produtos de tabaco. O que há é um amplo arcabouço jurídico3 voltado a: assegurar proteção contra os riscos da fumaça do tabaco; restringir o acesso a esses produtos; proteger crianças e adolescentes; limitar propaganda e patrocínio; instituir programas de cessação do tabagismo; promover campanhas educativas; e tributar o setor.
Apesar de todos esses esforços, a OMS4 ainda classifica o tabagismo como epidemia global, já que mata mais de sete milhões de pessoas por ano, incluindo cerca de 1,6 milhão de não fumantes expostos ao fumo passivo.
Convenhamos: é prazeroso — ao menos para quem fuma —, em um frio dia de inverno, apreciar um aromático fumo queimando lentamente no fornilho de um cachimbo de briar, acompanhado de um bom vinho do Porto ou de um saboroso conhaque. Ou, em um tépido dia de outono, degustar um habano pungente ao lado de um rum envelhecido em barris de carvalho, digno de Hemingway. Para os apreciadores, chega a ser uma experiência quase mística, observar a fumaça subir como metáfora de elevação espiritual. Já para os detratores, trata-se de um odor pior que o enxofre das profundezas do inferno de Dante.
E a pergunta que daí se impõe é: o fumo faz mal? A resposta é simples: claro que sim! Mas, se é maléfico, por que é permitido?
A questão é complexa. O consumo do tabaco, além de cultural e socialmente aceito — ou melhor, tolerado mediante restrições —, constitui, paradoxalmente, uma fonte importante de arrecadação de tributos. Por isso, tanto a produção quanto o comércio são considerados lícitos, situando-se o consumo no campo do livre-arbítrio.
Além disso, para muitos, se usado com moderação, o malefício pode ser comparado ao consumo de uma porção de torresmo com chope gelado em um clássico Palmeiras x Corinthians; ou de um calórico milk-shake com hambúrguer carregado de queijo cheddar, ketchup e batatas fritas crocantes.
Mas e aqueles que, seduzidos pela aura do fumo, não conseguem manter a moderação e acabam desenvolvendo graves problemas de saúde? Trata-se, à evidência, de uma pergunta de difícil resposta.
Muitos, arrependidos, buscam responsabilizar a indústria tabagista por meio de ações judiciais indenizatórias.
De modo geral, tais ações têm como fundamento a legislação de responsabilidade civil, em especial o Código Civil, e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que por sua vez visa proteger a saúde e segurança do consumidor (cf. artigos 6º, I, e 8º). Para os prejudicados, o cerne dessa questão está consubstanciado na colocação, no mercado, de um produto nocivo, que põe em risco a saúde de quem o consome (cf. artigos 12 e 14 do CDC).
O Poder Judiciário, contudo, especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem decidido de forma desfavorável ao fumante. Para o STJ, a produção e a comercialização do tabaco, além de lícitas, são fiscalizadas pelo Estado. O tabaco não é considerado “produto defeituoso” na acepção do CDC, pois sua nocividade é amplamente conhecida e divulgada. Assim, o consumidor, ao fumar, o faz por livre arbítrio e assume os riscos inerentes.
Na visão dessa Corte, é equivocado atribuir exclusivamente ao fabricante a responsabilidade pelo adoecimento do fumante. As doenças associadas ao tabagismo não decorrem de uso imediato, mas do consumo excessivo e habitual, geralmente por longo período, e se somam a fatores genéticos e ambientais. A periculosidade, portanto, é inerente ao fumo, e cabe ao indivíduo decidir persistir ou não.
Nesse sentido, são oportunas as palavras do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, da Terceira Turma do STJ, no REsp 1.322.964/RS (julgado em 22/05/2018)5:
“Aquele que, por livre e espontânea vontade, inicia-se no consumo de cigarros, propagando tal hábito durante certo período de tempo, não pode, doravante, pretender atribuir responsabilidade de sua conduta a um dos fabricantes do produto, que exerce atividade lícita e regulamentada pelo Poder Público. Tese análoga à firmada por esta Corte Superior acerca da responsabilidade civil das empresas fabricantes de bebidas alcoólicas.”
Depreende-se, portanto, que a responsabilização da indústria tabagista não é empreitada simples. O tabagismo, por si só, não gera automaticamente o dever de indenizar no ordenamento jurídico brasileiro.
Alegações de nexo causal presumido ou de degradação do discernimento do fumante não têm, em regra, sensibilizado o STJ. Para essa Corte, é indispensável a comprovação do dano, a identificação da autoria e a demonstração clara do nexo causal entre conduta e resultado.
José Ricardo Armentano / advogado na MORAD ADVOCACIA EMPRESARIAL
Fontes:
(1) https://biblioteca.observatoriosaudepublica.com.br/blog/tabagismo-e-as-consequencias-do-habito-de-fumar/?utm_source=GS_GoogleSearch&utm_medium=cpc&utm_campaign=olimpiadas-esporte-e-saude&utm_content=UM178&gad_source=1
(2) https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/tobacco
(3) https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/gestor-e-profissional-de-saude/observatorio-da-politica-nacional-de-controle-do-tabaco/legislacao/por-tema#:~:text=Lei%20n%C2%BA%2012.546%20(14%20de,ou%20p%C3%BAblico%2C%20em%20todo%20pa%C3%ADs.
(4) https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/tobacco
(5) https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?num_registro=201200930518