Não resta a menor dúvida sobre a fundamental necessidade de todos, sem exceção, terem acesso à Justiça.
E uma das questões muito discutidas em relação a esse tema diz respeito à própria linguagem jurídica, a qual, em razão do respectivo tecnicismo, constitui, para muitos, um verdadeiro entrave ao amplo acesso à Justiça, chegando a beirar, para alguns, um hermetismo digno dos alquimistas da Idade Média.
E é justamente por conta desse tipo de discussão que está tramitando na Câmara de Deputados o Projeto de Lei nº 3.326/21, de autoria do Deputado Paulo Bengtson (PTB/PA), propondo, em linhas gerais, modificações no Código de Processo Civil, mais especificamente no respectivo artigo 489, para que as sentenças em processos envolvendo pessoas físicas como litigantes passem a ser proferidas em linguagem coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da linguagem técnico-jurídica, mas acrescidas das considerações que a autoridade judicial porventura entender necessárias, de modo que a prestação jurisdicional possa ser plenamente compreendida por qualquer pessoa do povo.
O mencionado projeto propõe, ainda, de forma um tanto contraditória, que a utilização de expressões ou textos em língua estrangeira seja acompanhada da respectiva tradução em língua portuguesa, exceto quando se tratar de texto ou expressão já integrados à técnica jurídica.
O mencionado deputado justifica tal iniciativa sob o argumento de que o Direito, de um modo corriqueiro, utiliza-se de linguagem normalmente inacessível ao homem comum, do povo, por meio de texto hermético e incompreensível, impondo-se, em razão disso e, também, como um imperativo democrático, a tradução do texto técnico da sentença para o vernáculo comum.
Em que pese a boa intenção contida no mencionado projeto de lei, trata-se de uma iniciativa rasa, superficial, já que ela não combate tampouco contribui para erradicar a verdadeira causa daquilo que o aludido deputado pretende combater, que é justamente o grave problema educacional que a população vem vivenciando há décadas, em decorrência do descaso das autoridades, tanto do Poder Executivo quanto do Poder Legislativo, com a educação brasileira, e que a impede de compreender, no mais das vezes, textos elementares e comumente utilizados na comunicação cotidiana.
Na era da informação, onde o acesso ao saber é praticamente ilimitado, soam preocupantes os argumentos, as narrativas, as justificativas e as propostas de simplificação da linguagem jurídica técnica, motivadas por um — suposto — imperativo democrático, para um nível de compreensão compatível com as massas populares, principalmente se levarmos em conta as informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE sobre o percentual de alfabetização da população brasileira. Especificamente no que concerne às pessoas com mais de 25 anos de idade no Brasil (2019), o mencionado instituto destaca que 6,4% dessas pessoas não tem instrução, 32,2% não conseguiram completar o ensino fundamental e apenas 8% delas completaram o ensino fundamental (cf. educa.ibge.gov.br).
Valendo-se da simplicidade almejada pelo aludido deputado, vamos supor que um determinado parlamentar promova uma iniciativa legislativa para a obrigatoriedade de produção generalizada de papas e mingaus para desdentados, de modo a abranger toda a população, sem distinção quanto à respectiva arcada dentária. Sob o prisma dos desdentados, isso não parece ser uma solução sábia, tampouco eficiente e capaz de solucionar a problemática aí envolvida, já que não há tratamento da causa que originou tal mazela. Vamos supor que, em vez disso, sejam propostos estudos e planejamentos adequados, aliados a investimentos e ações concretas na área da saúde, destinados não só ao tratamento, mas, também, à prevenção da saúde bucal da população. Certamente esse tipo de iniciativa, além de ser muito mais assertivo, eficiente e frutífero para a solução desse tipo de problema, é, também, benéfico para a população como um todo.
Mutatis mutandis, ou melhor, mudando o que tem de ser mudado, esse exemplo bem ilustra a problemática existente na proposta do bem intencionado deputado. A mera simplificação da linguagem técnica empregada nas decisões judiciais não resolve a carência de quase 50% da população brasileira, que mal consegue compreender simples mensagens contidas em textos básicos e corriqueiros do cotidiano. Seria muito mais produtivo e eficiente se fosse concedido à população o devido acesso à educação, por meios e facilidades de capacitação que a torne apta a lidar com esse tipo de demanda.
É evidente que o Direito tem a palavra como uma das suas principais ferramentas, e que a clareza, a concisão e a precisão pela qual o raciocínio jurídico é materializado são, de igual modo, fundamentais para a sua efetividade, inclusive para a sua compreensão pelas mais diversas camadas da população. Contudo, é forçoso reconhecer que o nivelamento simplório da forma como uma atividade eminentemente técnica — que demanda, em razão disso, formação especializada — deve ser exercitada, além de não resolver o problema, não representa um imperativo democrático, vez que a solução disso, tal como delineado anteriormente, está justamente no acesso à educação de qualidade, que além de ser um direito fundamental para o desenvolvimento da cidadania, é, inequivocamente, fator preponderante para a ampliação da democracia.
José Ricardo B. Almeida / advogado na MORAD ADVOCACIA EMPRESARIAL